Pouco a pouco os espaços onde se realizam atividades culturais, sejam públicos, privados ou comunitários tem retomado suas atividades, voltando a gerar emprego e renda para os profissionais do setor. Ouvimos em vários momentos, análises e reflexões sobre como o setor cultural foi um dos mais afetados na pandemia, pois foi o primeiro a parar dada sua especificidade em juntar gente. Para os trabalhadores do setor a crise se aprofundou, mas já existia também pelo descaso do governo federal com a cultura, desde a extinção do Ministério da Cultura (MinC), até as sucessivas escolhas de nomes para a Secretaria Especial de Cultura, agora vinculada ao Ministério do Turismo.
Teve secretário fazendo discurso com referência ao nazismo, secretária desdenhando das vidas perdidas para a covid e para a ditadura militar (essa mesma que recebe pensão até hoje de seu pai militar), sem falar no atual secretário que coloca como agenda cultural da pasta ir praticar tiro com os filhos do presidente. Todo esse descaso com um setor que gera um impacto de 2,64% no Produto Interno Bruto do País (PIB), segundo dados de pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo e Sebrae.
Não podemos esquecer que a Lei Aldir Blanc, que garantiu recursos do Fundo da Cultura para os trabalhadores do setor que perderam sua renda durante a pandemia, só saiu graças a mobilização do setor, que se articulou com parlamentares progressistas e de esquerda para pressionar a Câmara pela aprovação do projeto, assim como sua prorrogação.
Durante a crise da covid, uma situação me chamou atenção nessa vivência como artista e produtor cultural, sobretudo quando a população se deu conta que a situação era séria e que não sairíamos tão rápido dela quanto desejávamos. Foi a percepção mais ou menos generalizada, de formas distintas é fato, sobre a importância do acesso aos bens culturais e como eles contribuem para a manutenção da vida na sua integralidade. O capitalismo já sabe disso, sabe que acessar cultura faz parte da reposição da força de trabalho, por isso se investe tanto em cultura de massas, como novelas, filmes populares, shows de forró… Exemplos temos vários.
Não vou entrar no mérito da qualidade disso ou daquilo, toda arte cumpre um papel, eu mesmo estou necessitando de um piseiro lá no Picadeiro do Parque de Exposições Pedro Felício Cavalcante – no Crato, ou quem sabe a volta do JuaForró – em Juazeiro do Norte. O que quero tratar é como nós do setor sofremos uma investida brutal da estrutura capitalista, seja pela criação de um imenso exército de mão de obra desempregada, dada a especificidade de muitas funções e a falta de espaço na pandemia para exercitá-la, ou mesmo por não ter como atuar em outra área dentro do setor artístico.
Aos que conseguiram seguir arrumando alguma coisa nos poucos editais que saíram antes da Aldir Blanc, ou das políticas que alguns estados lançaram, como o ‘Cultura Dendicasa’ aqui no Ceará, tiveram que lidar com a obrigatoriedade da quase totalidade desses editais que exigiam que o trabalho apresentado fosse inédito e que tratasse da pandemia, da vida em isolamento, dos seus efeitos. Nos jogando, assim como foi comprovado no trabalho remoto, numa espiral de produtividade escomunal, nos levando a esgotamento físico e mental. Claro, isso para profissionais que não estão na cultura pop, pois estes mesmos com suas reclamações (as vezes mais as vezes menos justificáveis) conseguiram fazer lives e ganhar seus milhões, mas essa condição só se encaixa em muitos poucos. A maior parte de nós de fato sofreu bastante e segue sofrendo.
Nesse contexto, de ampliação da percepção geral da importância que o acesso aos bens culturais traz para nossas vidas, começou a se colocar mais pressão sobre nós para que produzíssemos trabalhos para serem consumidos como se cada trabalho fosse um comprimido analgésico, o que a meu ver tem um efeito danoso para o desenvolvimento cultural de nosso país e para os trabalhadores do setor. Pois, arte não se trata de cura ou terapia, mesmo que alguns artistas trabalhem por esse viés e que de alguma forma o acesso à arte gere bem-estar social. A arte é mais que isso, propõe outras finalidades também.
Mas a pergunta que fica agora é: depois de tudo isso que passamos, o povo no geral com o isolamento e o luto, colocando os trabalhadores da cultura nesse lugar de produtor de medicamento de baixo custo e efeito imediato, por mais que temporário, como vamos nos portar quanto ao consumo de bens culturais? Vamos voltar a frequentar os espaços culturais, ou começar a ir, para quem não ia? Vamos começar a comprar livros? Vamos fortalecer a economia criativa local na hora de presentear alguém, por exemplo? Ou será que vamos esperar a próxima pandemia?
Por fim, não esqueçamos de nenhuma vítima da Covid, especialmente aqui quero lembrar das trabalhadoras e trabalhadores da cultura que perdemos no processo. Vão assistir Marighella de Wagner Moura nos cinemas, tanto pela qualidade do filme que tá babado, quanto para dar um grande não a censura.
E por fim mesmo, queria dizer que escrevi essa reflexão pensando na inestimável perda da Marília Mendonça e no quanto eu me arrependo de não ter ido ao show que ela fez numa ExpoCrato e que agora não terei mais oportunidade de vê-la ao vivo. Então gente, aproveitem e vejam o máximo de artistas em seus trabalhos quanto lhe for possível, pois a vida é muito breve para todos nós, sobretudo para nós classe trabalhadora.
*Trabalhador da cultura e militante social.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Camila Garcia