A exposição ‘Invocando o Sagrado: Memórias em Transe’, de Eliana Amorim, tem cheiro, não digo só o cheiro das folhas, madeiras e terras que ocupam a galeria do 4º andar do Centro Cultural do Banco do Nordeste Cariri, é sobre um outro cheiro que me refiro.
Depois de dois anos de isolamento físico, medos e tristezas que enfrentamos todos nós coletivamente, mesmo aqueles dito cujo que se negavam e ainda se negam a aceitar, sob a ameaça iminente de perder a vida, ou perder alguém que amamos, ou os dois, depois de enquanto trabalhadores da arte termos sofrido o pão que esse governo amassou, sem políticas públicas e sob forte censura, para dizer o mínimo, voltamos gradativa e lentamente a retomar nossas atividades e projetos de forma presencial. Diante desses fatos, a primeira exposição em minha região que pude ver foi essa obra-prima de Eliana.
O cheiro de que eu falava ao entrar na exposição, foi tomando meu corpo como água toma o leito do rio, desentranhando de minhas memórias coisas há tempo vividas ou sonhadas. Logo na entrada, há uma série de pinturas com tinturas medicinais e lápis, retratando ervas sendo manuseadas por mulheres. O cuidado e a saúde ancestral foram me lembrando das medicinas com as quais eu mesmo me tratei, ou me trato até hoje. Uma vez, quando estive doente do fígado, com Hepatite A, mainha me colocou pra tomar chá de entrecasca de coco, nunca me esqueci do amargo, ou de reclamar com ela que não queria mais, lembrei também do vidrinho cheio de Macela que fica na minha caixa de remédios, a que levo pra todo canto, pra quando sinto enjoo ou dor de barriga.
As tinturas de Jurema Preta, Barbatimão, Aroeira, Quixaba, Ameixa, Caju e Hibisco Roxo que nas mãos curandeiras de Eliana pintam quadros e memórias, me levaram de volta para meus primeiros anos como estudante de agronomia e as minhas pesquisas com Karol, Geane, Josy e Cláudia sobre a produção e comercialização de plantas medicinais no Cariri. Lembrei das nossas visitas ao Mercado Central e ao Beco da Cebola, em Juazeiro do Norte. Nós conversávamos com as vendedoras e os vendedores, aprendendo sobre a serventia de cada erva, casca, tintura e como devia ser utilizada.
É desse cheiro que eu falo, que essa artista mãe mulher, curandeira lá de Exu, no sertão pernambucano, me encheu ao entrar nessa exposição. Adentrar aquele espaço ritualizado, sacralizado e imantado na sabedoria de Eliana e das ancestrais dela, foi a dose da vacina que me faltava, pois as duas doses que me eram devidas já foram tomadas graças ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a despeito do governo federal.
A potência da poética sagrada de Eliana não para por aí, encontramos ainda na exposição a foto-performance-ritual, ‘Invocando o sagrado memórias em transe (2021)’, onde em sete (7) imagens podemos acompanhar o processo de coleta e preparo de um de seus rituais. As fotografias são ainda potencializadas pelo corpo dela carregando uma vida, enquanto faz um preparado a partir de plantas. A ação também faz parte do processo de criação da instalação ‘Assentamento (2021)’, também presente na exposição, nela temos o processo inverso da selvageria urbana que um dia enterrou sob o concreto e os vários andares daquele prédio, um solo vivo e em fruição, que agora é o solo trazido pela artista. Nele, uma pequena inscrição no chão da galeria soterra toda a cultura colonial, que nos dita o ritmo até os dias atuais, ali Eliana mete o facão nessa lógica e muda o tempo espaço que habitamos, fazendo um despacho colonial como diria Luiz Rufino.
Eliana, podemos dizer, está lançando uma ideia para adiar o fim do mundo, como propõe Ailton Krenak. A pergunta que fica é – quem de nós vai pegar essa ideia e lançar outra no mesmo prumo, mantendo o ciclo da Terra vivo, mantendo a esperança viva?
Entrar no universo ali parido por Eliana foi como receber uma benção de um encantado através das mãos de uma rezadeira, bem como ela pintou com as tinturas em seus quadros. Muito obrigada Eliana por partilhar com a gente seu trabalho.
*Trabalhador da cultura e militante social.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Camila Garcia