Manhã de quarta-feira de um tempo que busca se refazer. Depois de dois ônibus, um terminal e minutos esperando para atravessar a avenida movimentada sem faixa de pedestres, caminho alguns metros por uma rua de terra em um dos bairros com menor IDH de Fortaleza. Este percurso me leva a uma, entre as três escolas públicas em que trabalho como professora de Sociologia. Antes de entrar, o porteiro me confunde com aluna e cobra minha farda. Talvez eu não me vista feito uma professora, ou quem sabe eu conserve um coração de estudante, pensei.
Enquanto subo as escadas e me encaminho para uma das seis salas onde estarei hoje, o frio na barriga denuncia que não é um dia comum. Esforço-me para falar, escutar e ser ouvida, afinal todos estão de máscaras. Uso uma pff21 – equipamento de proteção individual ou EPI que paguei com meu salário, assim como a internet, os equipamentos que adquiri e os consertos que fiz mais de uma vez no notebook para ter condições de trabalhar nos últimos meses. Dei bom dia aos rostos que conheço somente das telas. Foi emocionante ir associando aqueles corpos cheios de dignidade às imagens e figuras que usavam como perfil no meet2 ou whatsapp. Lembrei das incontáveis vezes em que encontrá-los ali, nos quadradinhos da tela do computador, foi o que me resgatou do desânimo e da descrença em sobreviver ao fim do mundo. Diferenças há, mas ao fim, seja pela tela, seja presencial, tudo é sala de aula: espaço de encontro e encantamento, mas também de descontrole e convite ao erro.
Barulho de ventilador, calor, paredes descascando, carteiras riscadas, lousa, pincel, apagador, lista de chamada. Fui visitada por uma euforia, comparável aos primeiros dias de aula, seja como professora, seja como aluna. Parecia que estava começando tudo de novo e minha cabeça devaneava, falando comigo mesma: “devo ficar encostada na lousa ou andando pela sala? Será que estou suando demais? Desacelera! Tá falando rápido”. Será que um dia a sala de aula vai deixar de ser esse lugar que, apesar de amedrontar, atrai feito canto de sereia? À medida que os minutos - ou horas? - foram passando, o nervosismo cedeu lugar ao reencontro. Foi como se acendesse uma luz aqui dentro, ou um fogo me queimasse, avisando que somente ali a gente sente esse furor. Só a sala de aula tem essa magia difícil de explicar como são difíceis de explicar as coisas míticas: a aula planejada que ganha um rumo próprio, ou inesperado e nos obriga a jogar o planejamento pela janela, a pergunta que empolga ou desconcerta, as conversas e risos nos deixam inseguros, os olhares e balançar de cabeças que confirmam que estamos no rumo certo e as mãos que gesticulam no ar e ganham vida própria, empolgadas com o falar.
Quase dois anos depois, pisei em uma sala com alunos. O espaço escolar não me era novidade. Tinha vindo a esta, e a outras escolas em que estou lotada mesmo em período de ensino exclusivamente remoto, para pegar atividades impressas respondidas pelos alunos sem condições de acompanhar as aulas remotas, seja por não terem internet de qualidade em casa, ou porque tiveram que trabalhar, cuidar da casa, ou simplesmente não conseguiram se adaptar ao formato. É quase como o café com leite das brincadeiras infantis, uma escola vazia e silenciosa, não vale!
Na primeira quarentena com mais restrições, postei uma foto em sala de aula, mãos erguidas como quem acredita no que fala e rodeada de estudantes. Escrevi na legenda: “uma saudade” ao que vários colegas responderam concordando. Diversas vezes recebi mensagens dos meus alunos compartilhando que sentiam falta até de acordar cedo, do cheiro da farda lavada na segunda-feira, do gosto da merenda escolar. As instituições de ensino, mais do que lugares do saber formal, são espaços de sociabilidade, vivência coletiva, lugar de afetos, mas não cabe aqui a romantização deste retorno, embora não há como negligenciar que ele me revirou. Ao mesmo tempo que sinto falta do chão da escola, percebo o quanto estamos cansados, ansiosos, com medo e de certa forma, confusos.
A sala de aula é um dos lugares onde me reconheço, me perco e volto a me achar. No entanto, uma sensação de insegurança paira no ar: tantas escolas não possuem condições de seguir os decretos e oferecer as condições sanitárias adequadas. Alunos e funcionários muitas vezes usam máscaras precárias e por vezes mal colocadas, as rupturas que as sucessivas adaptações requerem, causam prejuízo pedagógico evidente e uma sensação de “se vira”. O tempo em que permaneceram fechadas enquanto bares, restaurantes e shoppings mantiveram-se abertos, diz muito da desimportância que nossa sociedade dá as escolas públicas. Relembro aqui que as particulares reabriram com mais antecedência. Em algum momento voltaríamos, é certo, mas qual o preço deste retorno? Pagaremos com o aumento de casos, uma nova onda, ou mesmo com a vida?
Quando digo que o mundo acabou não estou sendo apocalíptica ou muito menos fatalista. O mundo a que me refiro não é esse físico, até porque não é minha intenção reproduzir cenários que os filmes de ficção científica criam tão bem, falo do mundo social que construímos nas últimas décadas, com contribuições desiguais a depender dos lugares sociais a qual estamos vinculados. Acho que é tempo, mais do que antes, de ficarmos atentos a como a nossa sociabilidade vai funcionar daqui em diante. Será que haverá uma reviravolta no sentimento de coletividade? A crise vai ser tão forte que seremos capazes de repensar o mundo do trabalho, o papel da escola e nossas relações de afeto? Baiana System já cantou: “Tô preparando um bote/ talvez você nem me note/ amigo o nome disso é boicote.” O isolamento pareceu contar algo sobre estar junto. Saberemos ouvir?
*Doutora em Sociologia (UFC), professora da rede estadual do Ceará, pesquisadora do laboratório das artes e das juventudes – Lajus (UFC).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Camila Garcia