“Macaco”! Saulo ouve o insulto de um colega de escola, não leva o desaforo pra casa e derruba o material do aluno que o xingou. O professor, que só viu esse momento da cena, expulsa Saulo de sala. O enredo retrata algo corriqueiro na vida de Saulo, jovem da periferia de Fortaleza, no Ceará, roteirizado no longa “Cabeça de Nêgo”, produção que aborda, para além de outras pautas, o racismo estrutural na sociedade brasileira. A história contada é a do Saulo, mas traz para as telas do cinema o cotidiano de muitos jovens brasileiros, como aponta o diretor do filme, Déo Cardoso: “o meu protagonista, ele é um personagem muito comum, muito presente em todas as turminhas, em todas as escolas, que é aquela figura de um líder, mas um líder que não preenche ali o estereótipo do que vem a ser um líder”.
O filme aborda uma discussão sobre o racismo e a precariedade do sistema educacional público brasileiro. Produzido e distribuído pela Corte Seco Filmes, fez sua estreia mundial na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2020, onde foi ovacionado de pé ao final da sessão. É protagonizado por Lucas Limeira e conta ainda com as participações de Jéssica Ellen, Nicoly Mota, Jennifer Joingley Carri Costa, Mateus Honori e Val Perré. Está em cartaz nos cinemas de Aracaju (SE), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Manaus (AM), Palmas (TO), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP).
No “Cabeça de Nego”, a pauta racial está presente não só pelo que se vê na tela, a obra completa, desde o seu processo revela a potência e a sensibilidade de um cinema feito por um diretor negro, com atores e produção em sua maioria, negros. “Eu me sinto responsável por construir esse legado, de pautar essas questões dentro do entretenimento, porque eu não posso esquecer que o cinema é uma arte narrativa. Então, acho muito importante fazer essa pauta racial dentro do cinema, que é uma ferramenta potente, tanto de entretenimento, pra gente acompanhar, para gente fruir da obra, quanto também da pauta política. Porque eu acredito muito nessa simbiose, nessa união, nessa politização através do entretenimento”, defende Déo Cardoso.
O longa-metragem fez sua estreia nacional no circuito comercial no dia 21 de outubro, com índices expressivos de público nas salas em todo o Brasil. “Cabeça de Nêgo” chegou a figurar na lista entre os 15 filmes indicados para representar o Brasil no Oscar, na categoria “Melhor filme estrangeiro”. Ganhador de 2 prêmios (Prêmio de Melhor Longa-metragem e Mostra Olhar do Ceará, pelo Festival Cine Ceará 2020, e Melhor Longa-metragem pela Associação de Crítica Cearense de Cinema), foi o longa mais assistido na Mostra de Cinema Negro Zózimo Bulbul (2020), já passou por cerca de 12 festivais e está em exibição em diversas salas pelo país.
Protagonismo feminino
Na mesma pegada da representatividade, também foi exibido este mês no Cine São Luís, em Fortaleza, o curta “Arreda homem que chegou mulher”. Três mulheres, umbandistas, mães de santo vivem sob a pedagogia das Senhoras Pombagiras. Essa é a narrativa do curta-metragem documental, também de produção cearense, que registra o cotidiano de Telma, Cristina e Elisa e seus respectivos terreiros, com a premissa de compreender como esses espaços podem ser escolas de formação e emancipação feminina. Com elenco majoritariamente feminino, na frente e por trás das câmeras, o filme é dirigido por Renata Monte e tem produção executiva de Luana Caiube.
Para a diretora, a ideia do documentário é mostrar toda a potência feminina que brota dentro dos espaços de vivência nos terreiros: “a nossa ideia era construir um filme que não só abordasse a vida delas, mas abordasse a questão de os terreiros serem espaços educativos, espaços escolares na formação dessas mulheres, entendendo que terreiros são espaços de potência pra gente crescer. E foi a partir disso que surgiu o filme”. Para a produtora Luana Caiube, é fundamental tensionar esses espaços e trabalhar o protagonismo feminino como forma de ocupar lugares que lhes foram usurpados: “além de sermos mulheres de terreiros, nós somos também idealizadoras de um projeto sobre o protagonismo feminino aqui do estado do Ceará, que chama ‘Peixe-mulher’. Pra gente é de fundamental importância trabalhar nas frentes do protagonismo feminino tentando tomar de volta lugares renegados pra gente tanto na arte como na religião como em qualquer lugar que a gente ouse buscar ocupar”.
Representatividade para além da obra
Das telas do cinema para as discussões na rua, as duas obras têm em comum a intencionalidade no utilizar o audiovisual como ferramenta de expressão e fomento quando se trata de diversidade e representatividade. Sebre essa questão, Déo Cardoso afirma: “Eu sou um homem preto, fiz um filme ‘Cabeça de Nêgo’ com pautas do movimento negro que eu acredito, mas eu tenho plena ciência de que isso é apenas uma visão da negritude, que pode ter uma outra pessoa preta que não vai concordar com algum tópico. A população preta, assim como a população indígena, assim como a população LGBTQIA+, nós não somos homogêneos, mesmo dentro dos grupos, mas o que importa é pautar essas questões, discuti-las e visar o bem de toda essa galera que é oprimida historicamente”.
Para Luana Cauibe, o cinema e o audiovisual como um todo oferecem muitas possibilidades. Não é só se ver nas telas, por isso ela declara que as pontes já começaram a ser construídas: “A gente tá querendo construir um caminho diferente, a gente quer somar as forças, a gente quer conhecer, consumir o trabalho de outras mulheres, a gente entender onde elas se reabastecem e criar essa rede”, finaliza.
Para mais informações sobre os filmes
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Edição: Camila Garcia