Em 2019, um ano antes da pandemia mundial, eu andava em São Paulo e Belo Horizonte e me assustava com o crescimento da população em situação de rua. Ali mostrava o termômetro da crise que viria. Hoje, em Fortaleza e nas cidades medias do Ceará, centenas de famílias estão migrando das zonas rurais e bairros periféricos para morar nas ruas. A triste comparação com a megalópole paulistana não é de se estranhar, ao contrário, é até razoável aqui na terra do sol.
O cenário em que vivemos é desolador, aguçado pela pandemia e a falta de iniciativa do poder público para resolver os problemas do povo, levando os mais pobres a desesperança e, como única saída de sobrevivência vão para as praças centrais na tentativa de arranjar trabalho, de serem vistos, acolhidos e protegidos, numa falsa ilusão que o Centro da cidade garantirá uma certa segurança, pelo fato desse território ter um potencial econômico.
De dois anos pra cá, nós, dos movimentos populares, viemos alertando, lutando e pautando ações e políticas para conter essa tragédia social causada por uma política institucional desastrosa e que nesse momento, com todas as nossas lutas e ações de solidariedades ainda é insuficiente para conter a crise política, social, sanitária e espiritual que se alastra, criando um exército de refugiados urbanos.
Nesse contexto, depois de meses do brutal e inexplicável assassinato do jovem trabalhador Nailson, na Feira da José Avelino, a mesma guarda municipal, junto com o rapa e outros funcionários da prefeitura, usando o mesmo modo operante fizeram uma ação covarde, cruel e desumana de higienização na Praça do Ferreira, a mesma praça onde um grupo teve a coragem de vaiar o sol em 30 de janeiro de 1942 e que hoje, esse mesmo espaço geográfico serve de abrigo para dezenas de grupos de pessoas que não tem onde morar.
Dando continuidade na série sobre o abandono por parte dos governantes e a ocupação por parte do povo dos espaços sociais do Centro da cidade, afirmo categoricamente que esse drama social vai se perpetuar por muitos anos e para nós, ocupantes das ruas, esse tipo de violência não é nenhuma novidade, o crime desumano ocorrido na noite do dia 23 de setembro deste ano, das pessoas sendo removidas do local junto a pertences que incluíam objetos e documentos pessoais é mais uma marca histórica da perversidade das nossas elites, ficando registrada na memória desse cartão postal, que já teve cinco nomes, inaugurada em 1920, carrega até hoje o nome do ex-vereador de Fortaleza, Boticário Ferreira.
A praça dos grandes comícios, shows e eventos não é mais digna de ser chamada de “o coração da cidade”, a praça de Josés, Marias, Antônios, Franciscas é, e sempre foi a praça da burguesia que se divide nas siglas como o CDL, Sindilojas, Fecomércio, ASCEFORT (Associação dos Empresários do Centro de Fortaleza) e outras entidades que há anos patrocina essas higienizações, sempre expulsando, espancando, humilhando e prendendo “nossa gente” com a desculpa de garantir o direito do cidadão de ir e vir em nome de seus lucros e que hoje investem em shoppings centers.
Todas as quartas-feiras saímos de bicicleta da Praça da Cruz Grande, na Serrinha e cortamos o Centro a noite, passando por suas várias praças. É nítido o abandono (estrutural e político) desses espaços. As Praças da Bandeira, Praça dos Malandros, José de Alencar, Praça da Estação, dos Leões, Praça dos mártires ou (Passeio Público) estão sendo ocupada dia e noite pelo povo que não tem onde trabalhar e nem morar. São dezenas de famílias, crianças, velhos, pessoas famintas que perderam seus lares por diversos motivos, seja pela crise política e econômica, seja pela violência urbana, ou mesmo pela situação de drogadição. O fato é que essas almas estão a própria sorte a não ser pela caridade de poucos, em especial das pastorais sociais.
Se com a PL 1765/21, do Deputado Federal José Guimarães (PT) que derrubou o veto do Bolsonaro e garantiu o Despejo Zero até dezembro deste ano essas brutalidades acontecem, o que será desse povo quando o veto acabar? Será que a prefeitura vai continuar recolhendo colchões, papelões, cortando os punhos das redes com pessoas indefesas dormindo e jogar no lixo, ao som estridente do silêncio dos “homens de bem” que abandonaram o velho Cine São Luís? Me parece que os constantes despejos nos novos espaços só têm como testemunha ocular a Coluna da Hora, o relógio charmoso que vê todas as injustiças na calada da noite, dormente em cima da velha cacimba, fonte de água negada para aqueles que trabalham e moram nesse território contraditório.
Os direitos fundamentais do povo em situação de rua, que mora no Centro não são minimamente garantidos, como fica evidente na posição da CDL: “Nesse contexto, reafirmamos o nosso apoio à importante e irreversível ação de requalificação desse espaço urbano por parte da Prefeitura de Fortaleza que demonstra a capacidade e o esforço para se fazer cumprir a lei e o zelo pela ordem na cidade” (site da CDL Fortaleza, 2017). Essa passagem mostra que a prioridade não será de oferta de espaços e moradias, mas sim, da continuidade da prática de higienização. Enquanto isso, vamos deixar prédios fechados e lugares ociosos no Centro sem cumprir sua função social?
*Assistente Social, militante do MTD e defensor dos direitos humanos e da paz na periferia.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa