O Vale do Jaguaribe é uma fértil região localizada a leste do estado do Ceará. É cortada pelo Rio Jaguaribe, o maior e mais importante rio cearense, fornecendo água para os cultivos que são realizados em seu leito. Essa potencialidade agrícola do Vale do Jaguaribe passou a ser capturada por frações do capital, sobretudo a partir do período da Ditadura Militar que, juntamente com órgãos estatais como o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) investiram na irrigação empresarial nessas terras, inicialmente captando água diretamente do rio.
Na década de 1970 deu-se início a construção de perímetros irrigados no Nordeste, que são infraestruturas públicas federais construídas pelo DNOCS com o objetivo de difundir a prática da irrigação e impulsionar a produção agrícola em larga escala no semiárido. Naquele período, o estado desapropriou vastas extensões de terra no Vale do Jaguaribe para construir dois perímetros irrigados, o de Jaguaruana e o de Morada Nova. Posteriormente, no final da década de 1980, construiu-se o perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi e duas décadas depois o perímetro irrigado Tabuleiro de Russas, ambos que passaram a abrigar grandes empresas do agronegócio, incluindo multinacionais, que se estabeleceram em terras antes ocupadas por camponeses no interior e nos arredores dos perímetros irrigados.
Além das ações do Governo Federal, via construção de infraestrutura pública de irrigação para atender a interesses privados, o Governo do Estado do Ceará vem, desde os anos 1990, destinando recursos financeiros e políticas públicas para impulsionar a territorialização do agronegócio na região, atraindo empresas agrícolas nacionais e multinacionais e reconfigurando os usos da terra e do território por todo o Vale do Jaguaribe, mediante instalação e expansão de grandes firmas do agronegócio que atuam ou atuavam na produção e exportação de frutas, com destaque para banana, melão, melancia, mamão, abacaxi e manga, voltadas para os mercados nacional e internacional (mormente europeu).
Com a instalação das empresas do agronegócio da fruticultura, a partir de 1990, intensificaram-se os conflitos no Vale do Jaguaribe, pois tais firmas agravaram a concentração fundiária e hídrica, implementaram o uso em massa de agrotóxicos e contribuíram para a redução da biodiversidade mediante avanço da monocultura com desmatamento e contaminação do solo, da água e do ar. Isso resultou em desequilíbrios sociais, ambientais e territoriais sem precedentes para a região, registrando-se aumento do número de casos de câncer em decorrência do uso de agrotóxicos, exploração e adoecimento de trabalhadores, desapropriação de camponeses mediante invasões de terras, difusão de prostituição e consumo de drogas nas comunidades, malformações congênitas em recém-nascidos, expansão da violência e da criminalidade no campo, entre outras graves consequências que ainda hoje se fazem presentes e as configuram enquanto as heranças malditas deixadas pelo agronegócio nesse território.
A expansão do agronegócio na região foi particularmente incisiva na Chapada do Apodi, que além de abrigar o perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi, passou a contar com a presença das poderosas corporações especializadas na produção e exportação de frutas. Em pouco tempo, assistiu-se a uma alteração quase que completa da questão agrária da Chapada do Apodi, mediante expansão do latifúndio, da monocultura, do uso de agrotóxicos e do acirramento da concentração hídrica e fundiária nessa porção do Vale do Jaguaribe, considerada como o filé do agronegócio da fruticultura no Ceará.
As comunidades viram-se literalmente ilhadas pelo agronegócio, cercadas pelas firmas que fazem um uso intensivo da terra, da água e do trabalho a fim de viabilizar seus empreendimentos que deixaram um rastro de destruição na região.
Merece destaque o papel que essas firmas tiveram na reconfiguração da questão agrária do Vale do Jaguaribe, alterando as formas de uso, posse e propriedade da terra na região. Isso se reflete nas inúmeras estratégias usadas pelas empresas para se fixarem no território, como grilagem e invasão de terra pública localizada nos perímetros irrigados, compra de grandes e pequenas propriedades, aquisição de lotes em perímetros irrigados, arrendamentos e parcerias, expropriação e expulsão de camponeses das terras.
Esse processo agravou ainda mais a concentração fundiária na região que conta com elevada proporção de terras nas mãos de poucos, enquanto muitos estão sem-terra ou com pouquíssima terra, impossibilitando a sobrevivência das famílias camponesas e reforçando a presença do latifúndio e do poderio das firmas. Um estudo sobre a concentração de terras pelas maiores empresas da fruticultura, publicado no livro “As firmas tomaram conta de tudo”, chegou ao resultado de que apenas seis firmas concentram aproximadamente 35 mil hectares na região, dispersos por várias propriedades e em distintos municípios.
Apesar de todo esse pacote de maldades instaurado na região diretamente pelas firmas da fruticultura, formou-se uma articulada rede de mobilização, luta e resistência, que vem conseguindo importantes conquistas no sentido de barrar e/ou amenizar os impactos provocados pelo agronegócio. Nesse movimento, é notória a participação pioneira do camponês conhecido como Zé Maria do Tomé, morador de uma das comunidades mais diretamente atingidas pelo avanço do agronegócio na Chapada do Apodi. Zé Maria lutava contra a pulverização aérea de agrotóxicos, a apropriação e contaminação das águas, a concentração de terras e a exploração dos trabalhadores. Zé Maria lutava pelo direito dos camponeses à terra e à água, pela autonomia das comunidades e pela construção de um outro modelo de vida no campo, distinto do projeto de morte difundido pela intrínseca imbricação entre estado e capital.
Em razão de sua luta, Zé Maria foi perseguido e ameaçado por fazendeiros e empresários. Foi assassinado em 21 de abril de 2010 supostamente a mando do proprietário de uma das empresas instaladas na região, que estava entre as que mais se utilizavam da pulverização aérea que cobria de veneno suas plantações de banana. Após seu assassinato, deu-se a criação do M21 (Movimento 21), um coletivo que congrega movimentos, organizações, sindicatos, associações, universidades e pastorais, cujas ações permitem a continuidade da luta e da resistência no Vale do Jaguaribe, diante do grave quadro de injustiça social e ambiental preconizado pelo agronegócio. Assistiu-se também a uma intensificação das denúncias, das mobilizações e das articulações enquanto mecanismos de resistir ao avanço do agronegócio.
Dentre as importantes conquistas advindas das lutas na região, registra-se a realização de uma importante retomada de terras na Chapada do Apodi organizada por MST, Via Campesina e Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, quando, em maio de 2014, centenas de camponeses sem-terra ocuparam parte do perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi, que vinha sendo invadido/grilado por empresas do agronegócio. Esse território de luta e resistência foi batizado de Acampamento Zé Maria do Tomé e consolidou-se como um espaço de produção agroecológica e de construção de bem viver, apesar de sucessivos ataques por parte do estado e das firmas do agronegócio, mediante pedidos de reintegração de posse e ameaças de despejo.
Esse acampamento é um dos territórios que reforçam o legado de luta semeado por Zé Maria, evidenciando que a insurgência e a articulação dos povos do campo são maiores do que a força e a violência do estado e do capital.
O Acampamento Zé Maria do Tomé reforça a resistência do campesinato em busca da efetivação da reforma agrária popular e da democratização do acesso às terras da Chapada do Apodi, para que seja possível construir um outro modelo de vida e de produção na região, se contrapondo ao modelo de morte pretensamente hegemônico representado pelo agronegócio.
A existência do Acampamento Zé Maria do Tomé em meio ao lócus de reprodução do capital no Ceará evidencia a necessidade de fortalecer uma resistência ativa aos imperativos do agronegócio, cujo principal caminho se faz na luta cotidiana produzindo alimentos de qualidade e livres de agrotóxicos que alimentam as famílias brasileiras.
Os desafios atuais no Vale do Jaguaribe, entretanto, são inúmeros e vão muito além do agronegócio da fruticultura, provocados por atividades neoextrativistas como mineração, energia eólica e solar, pecuária e carcinicultura, somados à privatização e canalização do Rio Jaguaribe, extração da água dos aquíferos Jandaíra e Açu, coerção e exploração de trabalhadores, contaminação da água e do solo por veneno, contaminação e adoecimento de trabalhadores e comunidades, negação de direitos à terra, água, território, natureza, alimento, saúde, educação, moradia, saneamento, políticas públicas etc.
Todavia, se fortalecem as mobilizações dos coletivos, organizações e movimentos populares, bem como a resistência ativa e cotidiana de camponeses que fazem de suas vidas o sentido da existência nessa região e que erguem, com muita dificuldade, os caminhos que nos apontam que a construção de um Brasil socialmente justo e ambientalmente saudável é possível.
Viva a resistência ativa no Vale do Jaguaribe. Viva o Acampamento Zé Maria do Tomé. Viva a insurgência dos povos do campo contra o pacote de maldades do agronegócio.
*Integrante do M21, professor da UFRN e autor do livro “As firmas tomaram conta de tudo”
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa