Os problemas sobre os quais Paulo Freire se debruçou continuam candentes no Brasil.
Nos dois artigos anteriores destaquei aspectos biográficos e históricos da trajetória de Paulo Freire e as bases conceituais de seu pensamento, explicitando a riqueza e profundidade das ideias do patrono da educação brasileira. Neste último texto, apontarei elementos que justificam a atualidade de seu legado e alguns desafios para a construção de uma educação libertadora numa perspectiva freireana.
O fato de haver cerca de vinte institutos Paulo Freire espalhados pelo planeta e de ser um dos autores mais citados em trabalhos acadêmicos no mundo, por si só, já demonstra o interesse pujante em torno de sua práxis educacional e a vitalidade de suas obras. Porém, a atualidade de Freire reside, no meu entendimento, em três determinações principais:
1. Os problemas sobre os quais se debruçou continuam candentes no Brasil, como o analfabetismo absoluto que ainda atinge 11 milhões de brasileiros acima de quinze anos e a vergonhosa marca de 38 milhões de analfabetos funcionais, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD, 2019). Ainda predomina um modelo escolar orientando pelos paradigmas da educação bancária, do ensino básico ao superior. O elitismo acadêmico e científico se perpetua como padrão de comportamento diante de saberes e experiências populares. A violência simbólica e material das classes dominantes, operada a partir do Estado, não dá trégua aos oprimidos, sobretudo à população negra, mulheres, juventude das periferias, pessoas LGBTQIA+, povos indígenas, etc.
2. O pensamento freireano é profundamente interdisciplinar, característica necessária para a compreensão da realidade contemporânea em sua totalidade. Não à toa, áreas das ciências da saúde, agrárias e jurídicas, bem como o campo das artes, se aproximam e dialogam com seu legado. A potência de tal interdisciplinaridade pode contribuir de forma mais decisiva com a superação da hiperespecialização, da hierarquização e fragmentação do saber, impregnados nos currículos e pesquisas científicas desenvolvidas nas universidades brasileiras.
3. A dimensão educativa das lutas da classe trabalhadora e a função pedagógica da atuação dos movimentos populares, seja na conscientização e aglutinação de seus membros, mas também na politização do conjunto da sociedade, repousam em Paulo Freire com um princípio indissociável. Na disputa dos rumos das políticas educacionais, nas ações formativas de grupos e coletivos populares ou no embate ideológico no seio da opinião pública, os fundamentos da teoria da ação dialógica elencados por Freire, como a co-laboração, a união, a organização e a síntese cultural devem ser observados sob o risco dos esforços empreendidos pelos oprimidos pela sua libertação serem manipulados ou se distanciarem de um projeto de nação livre e soberana.
Uma frase conhecida do nosso homenageado diz que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Parece que essa profecia trágica, mas previsível, se confirma na atualidade com a ascensão de líderes populistas de extrema direita, com forte apoio e simpatia de setores das classes populares. Por isso que, junto com a compreensão inequívoca da atualidade da pedagogia freireana, é indispensável o apontamento de alguns desafios colocados à construção de uma educação emancipatória que contribua com a superação das relações de opressão e desigualdades que permeiam o conjunto da sociedade brasileira.
Nesse sentido, Paulo Freire nos interpela a pensarmos e agirmos sobre a realidade de agora, mas sempre vislumbrando um futuro esperançoso. A edificação de uma escola pública popular, alicerçada numa verdadeira participação democrática da comunidade escolar e num vínculo orgânico com seu entorno; a defesa da liberdade de cátedra contra todos os projetos autoritários que visam controlar e expropriar a autonomia docente; a denúncia à ingerência das políticas educacionais por institutos empresariais que tem conquistado cada vez mais espaços em secretarias municipais e estaduais de educação; a elaboração de um projeto de alfabetização e inclusão digital independente das grandes corporações, que monopolizam tecnologias e plataformas responsáveis pelo sequestro de dados e pela manipulação de subjetividades; e a conscientização das novas gerações para que possamos estancar a disseminação de valores e posturas intolerantes e preconceituosas, são tarefas imediatas que todos que se identificam com o legado freireano devem assumir para podermos resistir e apontarmos, nas palavras do mestre, para a “criação de um mundo em que seja menos difícil amar”.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa