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Os fundamentos da Pedagogia do Oprimido – Parte 2

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Paulo Freire desenvolve um método de alfabetização que leva em conta a vivência e o contexto do aluno - Foto: Arquivo Instituto Paulo Freire
Neste artigo apresentarei as categorias centrais e principais características da teoria freireana.

A repercussão do centenário de Paulo Freire tem sido significativa nesses últimos dias. Movimentos populares, intelectuais, artistas, personalidades de todos os tipos e até megacorporações, como  Google e Unibanco renderam homenagens e referências ao aniversariante.

O nome do educador também tem rendido calorosos debates no cenário político nacional, em especial devido aos ataques lançados por grupos e porta vozes da extrema direita nesses últimos anos, inclusive com a tentativa de retirada do título de patrono da educação brasileira, instituído pela lei nº 12.612 de 2012. As críticas a Freire, que partem desde os ministros da educação do governo federal, do próprio presidente da república e as que circulam nos esgotos das redes bolsonaristas, são absurdamente rasas e sem nenhum respaldo teórico ou histórico. 

Por isso a importância do debate sério e profícuo acerca do legado de um dos intelectuais mais importantes do século XX, um dos mais citados em trabalhos acadêmicos no mundo e cujo pensamento ainda mobiliza pesquisas, eventos e experiências educacionais em diversas áreas do conhecimento. Neste segundo artigo referente ao seu centenário apresentarei as categorias centrais e principais características da teoria freireana, destacando a originalidade e radicalidade de suas formulações.

Fontes de seu pensamento

Em levantamento feito por Ana Maria Araújo Freire, no livro “Paulo Freire: uma história de vida”, observa-se a diversidade de apropriações e influências teóricas na construção do seu pensamento e de suas obras. Porém, pode-se afirmar que três fontes determinantes moldaram o desenvolvimento  de sua visão de ser humano e de educação, que são: o nacionalismo Isebiano, o existencialismo cristão e o marxismo.

A primeira, disseminada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 e  vinculado ao Ministério de Educação e Cultura, teve um papel fundamental na construção de uma leitura criativa acerca da cultura brasileira alicerçada na valorização dos elementos nacionais, na crítica contundente à alienação cultural e numa forte perspectiva anti-imperialista. Foi a partir desse universo que Freire também teve contato com epistemologias anticoloniais africanas, em particular, com as ideias de Amílcar Cabral e Franz Fanon.

A segunda fonte tem um vínculo íntimo com sua própria trajetória pessoal com forte presença do catolicismo no seio familiar. O existencialismo cristão em Freire se expressa no profundo humanismo que percorre por toda sua obra e na postura ética assumida ao longo da vida em que conceitos como libertação, fraternidade, amorosidade e solidariedade possuem centralidade e se articulam como uma análise crítica das desigualdades no Brasil. Após a emergência da Teologia da Libertação no final dos anos 1960, essa corrente ganha ainda mais espaço em suas reflexões.
 
O marxismo, incorporado paulatinamente em seu olhar sobre o mundo, se dá a partir de estudos profundos em torno dos clássicos dessa teoria social. Marx, Engels, Lenin, Gramsci, Lukács, Rosa Luxemburgo, Mao Tse-Tung, Che Guevara e toda a tradição da Escola de Frankfurt são presenças constantes em seus livros e textos, sobretudo a partir da década de 1970. A apropriação rigorosa e ao mesmo tempo autoral do marxismo, o fez distanciar-se de leituras dogmáticas e posições sectárias que por vezes encontramos em autores e discussões políticas nesse campo.


Um dos objetivos principais de uma educação libertadora, segundo Freire, é contribuir com o processo de conscientização dos sujeitos oprimidos. / Foto: Reprodução/Instituto Paulo Freire

Conscientização

Um dos objetivos principais de uma educação libertadora, segundo Freire, é contribuir com o processo de conscientização dos sujeitos oprimidos, que não se dá de forma espontânea. Por isso a necessidade de ações educativas planejadas e comprometidas com o enfrentamento à alienação e a cultura do silêncio impostas às classes subalternas e às estratégias de inferiorização, de manipulação e de falsa generosidade por parte das classes dominantes. Do ponto de vista pedagógico, essas estratégias se condensam num projeto de educação bancária, definida na Pedagogia do Oprimido como “um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante”. Nela, há a objetificação do educando a partir de um disciplinamento autoritário e prescritivo, forjando um ser dócil e fatalista.

Em contraponto a esse projeto opressor de formação, propõe uma educação fundada em alguns princípios como a dialogicidade, a práxis (indissociabilidade entre teoria e prática) e a conscientização. Neste último, parte-se do pressuposto de que os oprimidos estão inseridos em contextos que predomina uma consciência ingênua, que mistifica e fragmenta a realidade. Para superar essa condição, lideranças, educadores, movimentos populares, etc., devem forjar iniciativas que tensionem com essa mistificação e fragmentação, promovendo uma consciência problematizadora acerca das diversas opressões que se expressam na sociedade. A desnaturalização e historização da exploração, do patriarcado, do racismo e do analfabetismo, por exemplo, são passos determinantes para se atingir uma consciência crítica, que pressupõe a denúncia e a ação transformadora por parte dos próprios oprimidos, imbuídos de confiança, autonomia e senso de coletividade, com vistas à superação das determinações objetivas e subjetivas que reproduzem as relações de opressão. 

O método

Muito se houve falar em “método Paulo Freire de alfabetização de adultos”. As contribuições de Freire nessa área são evidentes, reconhecidas por campanhas como a famosa “experiência de Angicos”, em que junto com sua equipe conseguiu alfabetizar dezenas de trabalhadores da cidade potiguar em poucos dias. Missão fundamental para a garantia do direito ao voto, já que até 1985 os analfabetos não podiam participar do processo eleitoral. Porém, o que poderíamos classificar como método Paulo freire, na minha avaliação, extrapola técnicas e procedimentos metodológicos relativos à alfabetização e escolarização. 

Mesmo não tendo tempo para apresentar e aprofundar sobre o tema, me somo a outros estudiosos que afirmam que Freire desenvolveu um método mais amplo de pesquisa e atuação na educação, articulado em seis procedimentos básicos: 1. A busca do conteúdo programático; 2. A elaboração do universo temático; 3. A investigação e definição dos temas geradores; 4. A identificação das situações limites; 5. A descoberta e apontamento do inédito viável e 6. O processo de codificação e decodificação da realidade.

A práxis freireana

Como apresentei no texto anterior, Paulo Freire atuou em diversas áreas, realidades e períodos históricos, possibilitando a construção de uma teoria educacional ampla e multidimensional. Assim, sua práxis nos ajuda a pensarmos o processo educativo em suas mais diferentes formas e espaços, seja na escola básica, na educação profissional, na universidade, na alfabetização de jovens e adultos, nos meios de comunicação, na formação política, dentre outras.

Em síntese, a práxis pedagógica freireana é baseada no vínculo orgânico entre suas ideias e propostas educacionais com as lutas da classe trabalhadora, na articulação permanente entre experiências educativas formais e não formais, no diálogo horizontal entre saberes populares e científicos e no combate a todas as formas de opressão.

Desconsiderado algum desses aspectos, seu legado acaba sendo deturpado ou simplificado, como é comum ser visto. Homenagens, celebrações e referências a Paulo Freire são justas e até obrigatórias, mas o zelo pela densidade, coerência e radicalidade do seu pensamento também deve ser um compromisso daqueles que procuram dar continuidade a teimosia e sonhos de nosso maior educador. Pensamento que permanece atual e necessário para a edificação de uma educação verdadeiramente democrática, plural e emancipadora. Atualidade e desafios que discutiremos na próxima semana.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Francisco Barbosa