Existia um ditado bem conhecido quando eu era mais nova que dizia: “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”. Isso em alusão à Roberta Close, uma famosa modelo. Obviamente, isso parte de um momento onde as pessoas não sabiam expressar bem que, afinal, uma mulher trans é uma mulher – e não um homem. Ainda hoje não há tanta educação social e cultural em torno disso, embora mudanças já sejam perceptíveis.
Bom, mas deixando o lado atrasado do ditado, há nessa sentença um traço bastante avançado: durante algum tempo, o Brasil foi um país que assumidamente achava Roberta Close, uma mulher trans, uma mulher lindíssima, digna de capas de revista e desfiles de escolas de samba. O Brasil amou Roberta Close.
Há pouco tempo, um conhecido me comentava como o Brasil “encaretou”, como regredimos culturalmente algumas décadas graças ao bolsonarismo e suas expressões mais populares.
Para além dos elementos da política institucional e dos agravantes ultraliberais de um governo pouco preocupado com o desenvolvimento do país, há também uma série de sinais de que Bolsonaro encarna, ele próprio, uma necessidade de impedir que se avance por essas terras qualquer movimento que cause ruptura com as tradições – a saber: cristãs, brancas e majoritariamente masculinas. É um processo permanente de negação ferrenha de tudo ligado ao feminino, aos desejos, aos corpos e, principalmente, ao poder que a autonomia dos corpos pode gerar.
O escândalo do ainda deputado Bolsonaro falando que não estupraria Maria do Rosário porque ela era feia, a confissão de que usava o apartamento pago com verba pública para ter relações sexuais, a insinuação de que sua filha é fruto de uma “fraquejada”, Twittar “o que é golden shower?”, usar a expressão “caguei” (quando confrontado sobre a CPI da covid), afirmar categoricamente que é “imorrível, imbrochável e incomível”: o que seria tudo isso, senão sinais nítidos de que o presidente denuncia constantemente que faz relação direta entre o poder que presume e anseia exercer com expressões corporais e sexuais?
Ter como maior símbolo gestual fazer armas com os dedos das mãos não passa também de uma demonstração da necessidade contínua de próteses. A carência de um poder real acarreta a urgência de criação de próteses de todos os tipos como armas e tanques – a guerra é o último reduto do impotente. Ao mesmo tempo que precisam de algo para expressar sua virilidade temem qualquer manifestação que traga isso à tona, fantasiam e enxergam sexualidade em todo lugar, como nos demonstrou casos de exposições censuradas e também como provou o depoimento de Mayra Pinheiro à CPI da covid, afirmando que existia um pênis na entrada da Fiocruz – se referindo ao logotipo de aniversário de 120 anos da entidade que reproduzia o topo arquitetônico do prédio onde reside a fundação.
Há uma grande confusão de desejos e faltas mal articuladas que conecta Bolsonaro e seus apoiadores. Dizem eles que o país pertence à família tradicional, fora e longe de uma realidade que propicie autonomia que sejam pontes de transformação – afinal, eles não sabem o que fazer em uma realidade onde seus roteiros de masculinidade não se encaixam ou não dominam.
Talvez o meu conhecido esteja certo, o Brasil encaretou. Prefiro pensar, no entanto, que ele foi momentaneamente sequestrado. Cabe a nós resgatar o Brasil que amou Roberta Close como porta de saída desse cativeiro, mas também como porta de entrada para um novo Brasil, que ame Robertas, Dandaras e Letícias. Contra os canhões e seus projetos de morte, a potência e criatividade da vida.
*Historiadora, psicanalista e militante social.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa