O cenário de pandemia aprofundou ainda mais a crise urbana. Mesmo nesse período o sistema capitalista, sem dar trégua, continua impulsionando a exploração da classe trabalhadora de forma brutal, sobretudo, os mais pobres. Desemprego, fome, violência e mortes, dramas que compõem um enredo já bem conhecido dos que lutam por direitos, justiça social e os que literalmente brigam para sobreviver são resultados da negligência e do abandono da pauta da reforma urbana pelas várias gestões municipais ao longo dos anos. Todas elas não têm um projeto de curto, médio e longo prazo com políticas públicas viáveis de reorganização e valorização dos espaços sociais para quem mora e vive do centro comercial de Fortaleza. Faremos uma série de artigos abordando esse tema, trazendo o debate sobre a disputa (ocupação) dos territórios “centrais” e do seu abandono por parte dos empresários e governos.
É fundamental entender a história dos espaços sociais em construção e em constante disputa do Centro de Fortaleza para compreendermos, especialmente os dois últimos conflitos em torno da rua José Avelino e de outros pontos turísticos como o Forte Nossa Senhora da Assunção, o Mercado Central, a Igreja da Sé e o edifício histórico Palácio do Bispo, também conhecido como Paço Municipal, sede do gabinete do prefeito.
Nessa primeira parte a série traz o conflito na rua José de Avelino que, infelizmente, levou a óbito o jovem Naison Abdenego de Sousa Barros, de 31 anos, durante o confronto dos feirantes com Grupo de Operações Especiais (GOE) da Guarda Municipal de Fortaleza (GMF), ocorrido na madrugada da quarta-feira, dia 18 de agosto. Casado e pai de uma criança, o rapaz que morava em Caucaia trabalhava na feira desde sua adolescência, ou seja, foram 15 anos dedicados aquele lugar, dando real significado àquele espaço, criando sentidos a partir da desigualdade implícita em sua reprodução social e produção econômica.
Nesse entendimento, a morte do Naison foi brutal, um nítido extermínio, além da causa ter sido fútil pelo fato óbvio dos ambulantes lutarem para garantir o direito ao trabalho. A execução foi feita pelo aparato do município que deveria proteger a população. O assassinato deveria ter um peso político maior, pois esse cidadão, como centenas de milhares de pessoas, se tornou uma simbiose daquele pedaço de chão construído com suor e sangue a partir de uma ordem urbana que vem historicamente segregando os trabalhadores.
Apesar de ser instigante debater sobre os espaços sociais que se constroem e se reproduzem de forma desigual e contraditória, na perspectiva do geógrafo estadunidense David Harvey, não teremos como aprofundar teoricamente esse tema aqui. Acreditamos que essa área geográfica do Centro da capital cearense merece um estudo sério e minucioso. Que apesar dos fatos aparentemente se mostrarem inéditos e gerarem muita comoção, principalmente pelas redes sociais, a feira existe "analogicamente" no mínimo há 20 anos e todos os anos as tensões nesse território se aguçam.
Não seria surpresa esse conflito explodir a qualquer momento, ainda mais em uma conjuntura adversa onde todo mundo está de luto e lutando para se vacinar e não morrer de fome. O mais curioso é que a feira se relaciona com todo um comércio regional (várias cidades do Nordeste) através de uma rede local de pequenos e médios produtores de confecções, empregando uma gama de pessoas em vários níveis (atacado e varejista) e, mesmo assim, a feira é classificada como balbúrdia, dando margem para outros atores do comércio e da política tratarem os trabalhadores como bandidos.
No entanto é bom falar que essa situação conflituosa não é uma particularidade dos sujeitos que sobrevivem na "feirinha da madrugada", são de todos os espaços sociais do centro comercial simbolizando a falta de capacidade da Prefeitura em ordenar o espaço urbano na disputa entre o mercado formal e informal. Vale destacar que com o alastramento da pandemia novos conflitos nasceram e outros ressurgiram nas mais diversas feiras livres das periferias de Fortaleza onde policiais, guardas e fiscais com o decreto nas mãos (a mando do executivo ou dos empresários de super mercados) elevaram o antagonismo da luta de classes nesses territórios criando um ciclo de violência contra os trabalhadores.
No dia do conflito, os agentes do GOE dispararam tiros de bala de borracha e, na correria, os feirantes revidaram jogando pedras. Apesar da violência estatal, os ambulantes não dispersaram e resistiram com cartazes, gritando palavras de ordem naquela madrugada. Tudo foi registrado por áudios, mensagens de texto, fotos e vídeos gravados por eles.
Em meio a disputa de narrativas na opinião pública, organizações e forças progressistas ficaram em silêncio e na tentativa de corrigir essa tragédia a prefeitura lançou um comitê de crise para avançar no diálogo pacífico com os trabalhadores. A primeira medida, ainda muito tímida, foi o cadastro dos que estão “irregulares”. O que mais será feito?
Não nos iludamos, enquanto não há uma resolução concreta para o problema a extrema-direita surfa nessa onda de caos e incertezas ganhando influências e alargando sua base eleitoral no meio desse público. O Centro da cidade está no centro das disputas políticas e ideológicas em Fortaleza. O que faremos?
*Assistente Social, militante do MTD e Defensor dos Direitos Humanos e da Paz na Periferia.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa