Nesse primeiro artigo, destacarei aspectos da trajetória de Freire no Brasil e no mundo.
Muitos textos, entrevistas e matérias especiais sobre o centenário de Paulo Freire já circulam em sites, blogs, revistas, jornais e redes sociais mundo afora, assim como seminários e mesas redondas virtuais. Portanto, me somo às inúmeras homenagens ao maior educador brasileiro de todos os tempos apresentando em três artigos alguns elementos históricos e conceituais sobre o personagem que julgo importantes nesse momento de celebração e reavivamento de um legado que permanece indispensável para todos que se empenham na construção de uma nação soberana e de um projeto de educação emancipatório.
Nesse primeiro, destacarei aspectos da trajetória de Freire no Brasil e no mundo, e as principais experiências protagonizadas por ele. No segundo, sistematizarei os fundamentos de sua teoria educacional, apontando a natureza e radicalidade de sua práxis pedagógica. No terceiro, problematizarei a atualidade do legado freireano para pensarmos e agirmos sobre a educação na contemporaneidade.
Infância e juventude
Paulo Reglus Neves Freire (19 de setembro de 1921, Recife – 2 de maio de 1997, São Paulo), desde seus anos de infância e juventude, teve sua trajetória pessoal atravessada pelas contradições que atravessam as vidas de milhões de brasileiros. Quando tinha 10 anos, devido a sérios problemas financeiros, sua família é obrigada a se mudar da capital pernambucana para a cidade vizinha, Jaboatão, onde passam por graves privações materiais que se aprofundam com a morte do pai. Aos 13 anos, Freire, sua mãe e seus três irmãos sentem as humilhações da pobreza e a dor da fome, muitas vezes amenizadas pela coleta de frutas em excursões nos quintais da vizinhança, memória eternizada em Cartas a Cristina (1994). Na adolescência, consegue uma bolsa de estudos para cursar o secundário no colégio Oswaldo Cruz, em Recife. Experiência essencial para sua formação humanística e para seu desenvolvimento intelectual. Freire, ingressa na Faculdade de Direito do Recife em plena ditadura do Estado Novo, em 1943, concluindo sua graduação em 1947, já no período de abertura democrática. Nesses anos, diferente de seus colegas, teve que conciliar a formação acadêmica com sua atividade docente, enquanto professor de língua portuguesa em vários colégios, dentre eles, o próprio Oswaldo Cruz.
Experiências do SESI e na Universidade
Paulo não chegou a praticar a advogacia, desde cedo imerso no mundo da educação, recebe o convite para trabalhar no setor de educação e cultura do recém criado Serviço Social da Indústria (SESI) de Pernambuco, no mesmo ano que conclui o bacharelado em direito. No SESI tem seu primeiro contato com a educação de adultos, experiência considerada por ele mesmo como um “tempo fundante”, no qual pôde pensar teoricamente o processo educativo e elaborar ações concretas nesse campo, a partir de formações, reuniões com professores, diálogos permanentes com educandos e nas conversas com pais de alunos. Uma análise dos textos e relatórios da época já apontam as inovações democráticas freireanas gestadas no interior de uma entidade empresarial, que diferente da sua, possuía uma visão assistencialista e produtivista na formação dos trabalhadores.
Concomitante a sua passagem pelo SESI, Freire também lecionou, de forma interina, na Escola de Serviço Social da Universidade do Recife, fundamental para o intercâmbio entre saberes distintos até então, o empírico (na indústria) e o teórico (na academia), bem como para a ampliação de sua leitura crítica acerca das determinações que geram as desigualdades e injustiças que alicerçam a sociedade brasileira.
Em 1955 é nomeado professor catedrático de História e Filosofia da Educação e em 1960, após concurso público, se efetiva na Universidade do Recife, na Faculdade de Educação, Ciência e Letras. Na universidade ajuda a criar e coordenar o Serviço de Extensão Cultural (SEC), instituição que cumpriria, de forma pioneira, um papel central no diálogo entre saberes populares e científicos. Destaque-se ainda sua atuação nos anos 1950 e 1960 no Instituto Capibaribe, no Serviço Social da Paróquia Arraial, no Conselho Municipal de Educação e na Divisão de Cultura e Recreação da capital pernambucana, na Escolinha de Arte do Recife e no Conselho Estadual de Educação de Pernambuco.
Os movimentos de educação popular e o golpe de 1964
Os anos anteriores ao golpe militar são marcados por uma intensa eferverscência política e cultural, com a emergência de lutas e movimentos populares (no campo e na cidade) que colocarão na ordem do dia a necessidade do enfrentamento às mazelas sociais no Brasil. No campo educacional, o Movimento de Cultura Popular (MCP), articulado pelo próprio Freire e criado em 1960, o Movimento de Educação de Base (MEB), fundado em 1961 e vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Centro Popular de Cultura (CPC), constituído em 1962 por iniciativa da União Nacional dos Estudantes (UNE), além de campanhas como “De pé no chão também de aprende a ler” na cidade de Natal, em 1961 e de “Alfabetização de Angicos”, também no Rio Grande do Norte, em 1963, protagonizaram um momento ímpar no debate e materialização de experiências de educação que revolucionaram concepções e práticas educativas no país.
O vínculo orgânico com as classes subalternas, a centralidade da política e relação com um projeto social anticapitalista, fundam esses movimentos de educação popular. Sejam os projetos de alfabetização de adultos, as rádios populares, as formações de lideranças comunitárias, os festivais de cultura popular, etc., todos tem em Paulo Freire a principal referência e a conquista dos interesses imediatos e históricos dos oprimidos como horizonte a ser perseguido.
Em 1963, com a repercussão e visibilidade das ideias e práticas do educador pernambucano, o Ministro da Educação do governo João Goulart, Paulo de Tarso, o convida para presidir a Comissão de Cultura Popular que, dentre as missões a serem desenvolvidas, estava a elaboração do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), com o intuito de construir ações de combate ao analfabetismo em todo o território nacional, a partir da mobilização de sindicatos, entidades estudantis, movimentos populares, universidades, associações de moradores e secretarias de educação.
Obvio que após a deflagarão do golpe, o PNA foi abortado e aquelas experiências de educação popular duramente reprimidas e desarticuladas. O próprio Paulo Freire, taxado como um educador subversivo, foi considerado um dos inimigos número um do regime militar, sendo preso duas vezes, na segunda detenção ficando aproximadamente 50 dias encarcerado. Segundo um dos inquéritos que procuravam justificar a perseguição:
“Dr. Paulo Regulus Neves Freire – É um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos. Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas (…). E não era criador de sistema, nem de método, não passava de um mistificador entre tantos outros que infestavam o país, mitos criados pela propaganda cerrada dos tarefeiros do PC [Partido Comunista], mestres em tais assuntos, alunos que são das escolas de psicologia e política montadas e sustentadas pelo PCUS [Partido Comunista da União Soviética]. (…) Autor de suposto método de alfabetização, onde dizia que alfabetizar é conscientizar e politizar. Tentou ludibriar o governo com seu ‘suposto método’ de alfabetização, procurando vendê-lo em diversas situações. Nenhum motivo tem a Pátria para agradecer os trabalhos de PAULO FREIRE e, ao contrário, a Pátria traída o procura, pelos atuais responsáveis pelo seu destino, para que lhe pague os danos causados. É um cripto comunista encapuçado sob forma de alfabetizador”.
O exílio
Nesse contexto, só lhe restou o exílio. Os quinze anos longe do Brasil se iniciaram com dois meses na Bolívia, antes de seguir para o Chile, onde passou cerca de quatro anos e meio trabalhando junto aos órgãos governamentais vinculados a política de reforma agrária daquele país. Em 1969 parte para os Estados Unidos após convite para lecionar na Universidade de Harvard, circulando também por várias outras universidades estadunidenses. Após o encerramento do contrato, Paulo aceita mais um convite/desafio e segue para Genebra com sua esposa Elza e filhos. Na Suíça trabalhou para o Conselho Mundial das Igrejas (CMI) entre 1970 e 1980. A partir dessa experiência, o educador brasileiro “andarilhou” pelo mundo, mas, sobretudo, pelo continente Africano, que passava por um processo complexo de lutas e guerras de libertação nacional contra o colonialismo europeu.
Freire e sua equipe do Instituto de Ação Cultural (IDAC), criado nessa temporada europeia, prestaram assistência aos governos de Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, para contribuir com a refundação de seus sistemas educacionais que, após as conquistas de suas independências, procuravam descolonizar seus currículos, conteúdos, métodos de ensino e mentalidade pedagógica, processo que pode ser melhor conhecido na obra A África ensinando a gente. Na Suíça também foi professor da Universidade de Genebra, na Escola de Psicologia e Ciências da Educação.
Foi nesse longo exílio que Paulo Freire escreveu obras clássicas, algumas delas traduzidas para as principais línguas do planeta, como a Pedagogia do Oprimido (mais de trinta idiomas), de 1970; Educação como Prática da Liberdade, de 1967; Extensão ou Comunicação, de 1969; Ação Cultural para a Liberdade, de 1974; Cartas à Guiné-Bissau, de 1976; e Educação e Mudança, de 1979.
A volta ao Brasil
Freire retorna ao Brasil após a aprovação da Lei da Anistia, com uma calorosa recepção por todos os lugares por onde passou, até fixar-se na capital paulistana, onde assina um contrato com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Desde sua chegada, viaja praticamente por todo o país para conferir palestras, ministrar cursos e receber homenagens. Estas últimas, inúmeras, desde títulos de doutor Honoris Causa até batismos de centros acadêmicos e bibliotecas populares com seu nome. Em 1989, é nomeado pela recém eleita prefeita de São Paulo, Luiza Erundina (PT), Secretário de Educação do Município, cargo que ocupa durante dois anos e meio, até maio de 1991.
Sua gestão é reconhecida pelo árduo trabalho no dia a dia das escolas, pela valorização do magistério e pelo redesenho da política educacional, pautado na intensa participação da comunidade escolar e familiares dos estudantes. Essa rica experiência está relatada e refletida no livro Educação na Cidade, publicado em 1991.
Os anos seguintes de sua vida foram dedicados ao estudo, escrita e organização de livros, como o Pedagogia da Esperança, o Pedagogia da Autonomia e tantos outros, muitos em parcerias. Freire também se reencontrou com os movimentos populares brasileiros, em particular com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), enxergando nesse uma luz no fim do túnel neoliberal que se alastrava por toda a América Latina.
Paulo Freire, mais do que criador de teses e métodos educacionais, é um produto das lutas e anseios das classes populares e dos oprimidos. É claro que sua capacidade de sistematização e formulação teórica, além do acúmulo de décadas de experiências multifacetadas em vários espaços educativos e tempos históricos, o tornaram um símbolo e referência obrigatória para os que pensam a educação como um processo contraditório, mas fundamental para a construção de uma nova hegemonia, edificada pela ação consciente de sujeitos e coletivos orientados por uma educação libertadora. Tema que discutirei na próxima semana, apresentando os fundamentos e principais características de sua Pedagogia do Oprimido.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa