Aos primeiros sinais de que entraremos para as estatísticas, nosso movimento é de negação: justificamos que a febre pode ser sintoma de outra doença, os espirros devem ser alergia a algo e a tosse é resultado do sol quente. Refazemos mentalmente nossos passos: por onde andamos, com quem tivemos contato, onde tocamos. As mãos tocam o álcool em gel repetidamente, na tentativa de quem sabe, evitar o avanço da contaminação. Em seguida, vem a expectativa do exame, a angústia da espera pelo resultado e a avalanche de sentimentos que a palavra “positivo” causa: medo, pavor, insegurança, desassossego, inquietação.
Este texto é um relato dos dias em que a covid-19 fez morada na minha casa e esteve presente no meu cotidiano de uma forma mais próxima do que já estava. Quase dois anos de pandemia e duas doses de vacina depois, meu pai, idoso e hipertenso, pegou covid. Após uma febre persistente e duas idas à emergência, o exame foi solicitado. Negligência ou falta de protocolos seguros para lidar com a situação? Até o momento, o Ministério da Saúde e o governo federal negligenciam práticas padronizadas de combate à doença. Ao contrário do que diz a publicidade local, não “vai dar certo”, porque já deu muito errado.
Enquanto escrevo, a pandemia no Brasil chegou a marca de 20.958.890 contaminados e 585.174 mortos. Sim, fomos mais um entre tantos a serem contaminados com o vírus da covid-19. Falo no plural – nós – porque, quando alguém testa para covid, todos que estão ao redor desta pessoa são afetados pela doença, mesmo que não sejam contaminados ou apresentem sintomas. Todos adoecemos um pouco. A covid exige a solidão e o isolamento como uma das medidas de tratamento e toda a casa se reorganiza para que o doente fique sozinho, mas não se sinta só. Esta doença amedronta, rouba nosso fôlego e esperança. A sensação é de que controlamos pequenos desesperos.
Os dias após o “positivo” seguem ora em câmera lenta, ora com rapidez e passam a ser contabilizados com apreensão, em um ciclo no qual as próximas 24hs são eternamente definidoras. O olho que nervosamente acompanha a contagem do oxímetro e termômetro, a torcida silenciosa, quase uma prece, para que a saturação não caia tanto ou a febre não suba mais. O que fazer ou para onde ir quando o peito não dá conta do ar que o corpo precisa? O SUS responde. Na unidade sentinela, montada pela prefeitura do Crato, cidade do interior do estado do Ceará, onde meus pais residem, fomos orientados a ficar atentos aos sinais. Fomos bem atendidos e saímos de lá com medicações gratuitas. A despeito dos ataques e sucateamento, nosso sistema de saúde carrega essa sina do povo brasileiro: forte, inventivo e persistente.
Próximo ao nono ou décimo dia, a doença atinge seu pico e o pavor da hospitalização se fez presente. Nesta hora, buscamos as palavras mais adequadas e menos aterrorizantes para dizer ao doente que ele vai precisar de internação e é impossível evitar o pavor que três letras podem causar: UTI.
Os dias no hospital exigem familiaridade com termos médicos e técnicos: pronação, D-dímero, sedação, gasometria, oxigenação etc, mas também nos faz perceber o tamanho da gentileza das técnicas de enfermagem e enfermeiras, do quanto o fisioterapeuta é um profissional fundamental, da necessidade de médicos humanizados, da genialidade do povo cearense que inventou o capacete Elmo.
Preciso contar que, embora nunca vá esquecer aquele olhar angustiado do meu pai, segurando o choro e o medo diante da filha, também experimentei gratidão quando os profissionais e funcionários do hospital o reconheciam, ainda que doente, dos atendimentos no banco público onde meu pai trabalhou por mais de 30 anos. Senti o amor fraterno me sustentar e não duvidei que tenho amigos fiéis, de reza forte, que zelaram por mim e minha família. O afeto destes chegou até nós em formas distintas como as orações, mensagens, ligações, comidas e tantos cuidados.
Na semana em que meu pai teve alta, Tarcísio Meira, ator de 85 anos, faleceu, mesmo após as duas doses da vacina. Um caso corretamente justificado pelos profissionais e comunicadores sérios que explicaram os porquês, mas um prato cheio para os negacionistas e sabotadores do fim desta pandemia. Poderia ter sido meu pai, mas não foi. E importa reafirmar que a vacina abreviou o tempo dele na UTI e barrou o avanço da infecção pelos seus pulmões. A vacina é nossa boia salva-vidas neste naufrágio. Funciona e tem mostrado resultados, como a diminuição de casos e mortes. Não à toa, o genocida sabotou até onde pode sua aquisição. A tragédia e o extermínio da vida são os projetos deste desgoverno.
Dias depois, com meu pai seguro e saudável, não segurei o choro represado há dias quando estava na fila para a minha segunda dose. Olhei para a ficha de vacinação nas minhas mãos e estava anotado em caligrafia primorosa a palavra “professora”. Ao meu redor, adolescentes também esperando pela vacina. A idade dos meus alunos. Eles estariam por ali? Tudo fez sentido. Fui atravessa pelo orgulho de ser professora e de ter sobrevivido. Meu pai, minha família e eu somos mais uns entre tantos e ainda assim, únicos. A covid-19 deixa sequelas que vão além do físico e tem uma ferida aqui que ainda lateja quando penso nos que não voltaram para casa e para os seus. Estar de pé é minha arma e a revolta, contra esse governo e seus apoiadores, é minha munição. Aos genocidas, desejo que sejam rasgados pela fúria que a injustiça alimenta. Aos sobreviventes, meu respeito.
Dedico este texto a Francineide Vilar, mais uma entre tantas: única.
*Doutora em Sociologia, professora da rede estadual do Ceará, pesquisadora do laboratório das artes e das juventudes (lajus-UFC)
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa