O Brasil é um país multicultural e que abrange diversas crenças religiosas. Mesmo com toda essa diversidade, a intolerância religiosa ainda está presente. Aos poucos, a luta contra esse tipo de descriminação vai se fortalecendo. Em 2007, por exemplo, o então presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sancionou a lei que criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que é comemorado no dia 21 de janeiro. A data presta uma homenagem à Ialorixá Gildásia dos Santos, conhecida como mãe Gilda de Ogum, fundadora do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã (BA), que em 2000 foi atacada dentro do terreiro.
Mas a intolerância religiosa está ultrapassando o limite do preconceito em relação as diferentes religiões e está chegando até mesmo a gerar conflitos por diferenças de pensamentos dentro da própria religião como vimos no caso envolvendo o Padre Lino Allegri, aqui em Fortaleza que foi alvo de hostilização em suas homilias ao criticar a política de combate e prevenção à covid-19 do governo Bolsonaro. Em um desses episódios, padre foi criticado ao ler uma nota divulgada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na qual um trecho diz “A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB levanta sua voz neste momento, mais uma vez, para defender vidas ameaçadas, direitos desrespeitados e para apoiar a restauração da justiça, fazendo valer a verdade. A sociedade democrática brasileira está atravessando um dos períodos mais desafiadores da sua história. A gravidade deste momento exige de todos coragem, sensatez e pronta correção de rumos”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Padre Lino Allegri disse que esse tipo de atitude tem a ver com o momento político-social que estamos vivendo no Brasil. “E talvez isso ganhou mais força, infelizmente, a partir da eleição de Bolsonaro a presidente, que se criou esse clima de antagonismo ferrenho, de ódio mesmo, que se manifesta de maneira brutal e violenta no palavreado e também nas ações”. Padre Lino afirma que “antes disso a gente fazia, realmente, na Igreja, menos pregações, digamos assim. As diferentes concepções de igreja não chegaram nesse ponto, digamos, violentos. Então isso é ligado mesmo ao momento político-social que estamos nós vivendo no Brasil”.
Babalorixá e professor, Baba Linconly é Doutor em Educação, professor na Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e pesquisador das manifestações culturais e religiosas africanas e afro-brasileiras no terreiro e na escola explica que é importante que a gente entenda e compreenda a diferença entre racismo religioso de intolerância religiosa. “A intolerância vai ser um ato que vai ser desenvolvido, praticado contra qualquer tipo de religião, mas a perspectiva das religiões de matrizes africanas, dos terreiros, basicamente, é a afirmação dessas organizações como um espaço político e de potencialização de vidas até então apenas subalternizadas e não apenas religioso. Nós estamos falando de um pacto civilizatório, pois se trata da estratégia de sobrevivência, luta e resistência de vários grupos étnicos, então falamos de um grande projeto civilizatório que são os terreiros”.
Questionado sobre já ter sofrido algum tipo de preconceito por conta da religião, Linconly afirma que já sofreu tanto no trabalho, enquanto professor da educação básica como nas próprias universidades que já trabalhou. Ele lembra que era muito complicado porque as pessoas tinham toda a carga de estereótipos em relação às religiões de matrizes africanas, em relação ao espaço do terreiro. Ele afirma que toda a carga de satanização, de demonização, de charlatanismo e heresia era associada e ainda é associada às religiões de matrizes africanas. “Então as pessoas ficavam com medo, as pessoas não queriam conversar comigo, as pessoas diziam: ‘lá se vêm o professor macumbeiro’. As abordagens policiais quando nós estamos fazendo os nossos rituais e oferendas nos espaços sagrados da natureza também vão se configurar dessa forma”.
Linconly lançou o curso chamado ‘Exu nas escolas’. Ele fala um pouco sobre os casos de racismo dentro das suas atividades. “‘sangue de Jesus tem poder’, ou então ‘esse tipo de demônio não vai entrar na minha sala de aula’, ‘se eu souber que esse tipo de conteúdo chega para o meu filho eu mando matar, eu mando prender a pessoa’, ‘a sala de aula é um local de Jesus, de Deus. Por que não vão ensinar a Bíblia nas escolas, né?’, sendo que o curso tratava-se de uma ação de potencialização da luta antirracista, de potencialização da ancestralidade nos espaços escolares, justamente para implementação da lei 10.639 que vai incluir a história da cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares”.
A Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003 foi sancionada pelo ex-presidente Lula e altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
Governo Bolsonaro
No governo Bolsonaro, segundo Linconly, a mudança foi para pior. Se a hegemonia já imperava nas instituições como, por exemplo, espaços hospitalares, escolas e instituições públicas, apesar do estado e a constituição garantir que o estado e as instituições sejam laicos, não são. “É na escola que é rezado o Pai Nosso; é nesses espaços onde são feitos os cultos evangélicos; é nesse espaço onde vai ser chancelado toda a base hegemônica judaico-cristã, cristã, branca, heterossexual e binária. Então dentro dessa ideia, o estado brasileiro vai chancelar toda a perspectiva de fortalecimento dessa base, essa base que eu falo é a hegemônica que caminha com essa perspectiva e hoje nos coloca novamente em um local de subalternidade, novamente é um local e silenciamento de acorrentamento das nossas ações”.
Ele explica que a Lei 10.639 vem justamente para tentar promover, através dos espaços educacionais, uma ação de reparação. “Nós estamos falando de política de ações afirmativas, só que o Estado, a partir do governo Bolsonaro, vai mais uma vez nos colocar para debaixo do tapete, mais uma vez vai nos silenciar, mais uma vez tentar colocar mordaça na nossa boca. E hoje, com o protagonismo de vários atores sociais, nós estamos promovendo ações de enfrentamento”.
Disque 100
Em 2011, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff (PT) foi instituído o Disque 100, número de telefone para receber denúncias de violações de direitos humanos, que começou a contabilizar os casos de intolerância religiosa. De acordo com dados levantados pela Rede de Observatórios de Segurança, através de monitoramento realizado baseados nas informações divulgadas na imprensa, no estado do Ceará, de junho de 2019, até maio deste ano, foram registrados 16 casos de intolerância religiosa, sendo cinco casos de depredação de patrimônio, dois de agressão verbal e um de agressão física.
Já em publicação feita no início deste ano em seu site, o Governo do Estado do Ceará informou que no ano passado, foram registradas dez ocorrências de crime contra o sentimento religioso. Todos baseados no antigo de 208 do Código Penal Brasileiro, de acordo com as informações. “A infração penal prevê pena de um mês a um ano ou multa, a qualquer pessoa que publicamente, por motivo de crença ou função religiosa, impeça ou perturbe as cerimônias ou prática de culto religioso e despreza publicamente ato ou objeto de culto religioso alheio. Os dados foram compilados pela Gerência de Estatísticas e Geoprocessamento (GEESP) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS)”.
Edição: Monyse Ravena