Quase todos os governadores da região são filiados a partidos que fazem oposição ao governo federal
Criado em 2019, o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste, tem sido celebrado como uma inovadora arquitetura institucional que aglutina os governos dos nove estados nordestinos. Essa iniciativa objetiva a construção de parcerias jurídicas, políticas e econômicas que viabilizem a contratação de serviços e bens em conjunto pelos consorciados, a compra de produtos em larga escala com preços mais atrativos, a atração de investimentos externos para a região, o intercâmbio de políticas públicas consideradas exitosas e o diálogo mais permanente entre os governadores. O marco legal que facilitou sua criação é a lei 11.107/2005, que autoriza os consórcios públicos, além do decreto 6.017/2007, que estabelece suas normas de funcionamento.
Não por mera coincidência, quase todos os governadores da região são filiados a partidos que fazem oposição ao governo federal. Rio Grande do Norte, Bahia e Piauí possuem administrações do Partido dos Trabalhadores (PT). Pernambuco é governado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Paraíba pelo Cidadania. O Maranhão comandado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Sergipe pelo Partido Social Democrático (PSD) e Alagoas pelo Movimento Democrático Brasileiro –(MDB). Mesmo os dois últimos não sendo partidos oposicionistas, seus governadores tem tido atritos frequentes com Bolsonaro. Com essa formação, para além da missão institucional, o Consórcio Nordeste tem se comportado como um contrapeso ao avanço da extrema direita no país, assumindo também um papel político e ideológico importante na atual conjuntura.
Vale destacar que mesmo possuindo 27,2% da população do país, a segunda região mais habitada, atrás somente do Sudeste, apenas 14,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro está concentrado no Nordeste. Ou seja, a violenta desigualdade regional, já discutida em outro artigo nessa mesma coluna, impõe a necessidade de integrações e articulações como essa.
Nas últimas semanas foi destaque na imprensa nacional e internacional, o impasse na liberação do uso da Vacina Sputinik V pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Tal vespeiro foi motivado pela celebração de contrato entre o Consórcio Nordeste e o Fundo Soberano Russo para aquisição de quase 40 milhões de doses de vacina, já utilizada em dezenas de países no mundo.
A negativa da Anvisa, para alguns analistas influenciada por pressões políticas e comerciais, acabou gerando vários debates e conflitos acerca da qualidade e eficácia da Sputinik V, bem como no acirramento de ânimos entre os governadores nordestinos e o Palácio do Planalto, que continua apostando na estratégia genocida de imunização de rebanho, que nos levará em breve à marca horrenda de 500 mil mortos vítimas da pandemia.
A breve trajetória do Consórcio Nordeste, com seus passos e atropelos, me provoca a levantar três pontos que julgo relevantes para o debate em torno dos rumos dessa experiência.
Primeiro, a despeito da necessária disputa que o Consórcio Nordeste tem travado contra Bolsonaro, os respectivos governadores não podem reproduzir (como já estão) determinadas políticas antipopulares e neoliberais que o governo federal tem protagonizado, a exemplo da famigerada Reforma da Previdência, que foi imposta goela abaixo em boa parte dos estados da região. Essa incoerência tem afastado importantes setores da sociedade civil organizada, como sindicatos e movimentos sociais, desses governos “não alinhados”, o que acaba sendo favorável para o fortalecimento do bolsonarismo, além de outras lideranças e partidos da nova e da velha direita. A oposição ao governo federal não pode se limitar à figura e aos abusos do presidente da república, mas direcionada ao conjunto do projeto político, econômico e ideológico que ele representa.
Segundo, para além de manifestos e coletivas de impressa, o Consórcio Nordeste tem o potencial de exercer um papel mais proativo e audacioso na atual quadra histórica. Deveria construir uma campanha permanente de informação para se contrapor às fake news e ameaças à democracia brasileira difundidas pelas milícias digitais e veículos de mídia bolsonaristas. Mas também tencionar de forma mais firme contra os mandos e desmandos do governo federal. Medidas simples como impedir que o presidente promova aglomerações em inaugurações de obras públicas, por exemplo, até respostas mais contundentes como articular o impeachment de Bolsonaro, pressionando as bancadas federais, prefeitos e a opinião pública. A própria questão da Sputinik V, ao meu ver, necessitaria de uma atitude mais decidida. Que venham as vacinas russas, nem que seja na marra!
Terceiro, a longo prazo, o Consórcio deveria apontar para um processo de integração e desenvolvimento regional verdadeiramente sustentável e soberano. Isso extrapola a mera atração de investimentos estrangeiros, como as grandes empresas do agronegócio e de setores da indústria com pouquíssimo valor agregado, que aproveitam as isenções fiscais, a baixa remuneração da força de trabalho e nossa frágil política de proteção ambiental, para explorarem nossos recursos naturais e humanos enquanto atenderem seus interesses imediatos. A integração e o desenvolvimento regional no século XXI precisam ter como horizonte o investimento em tecnologias de ponta, a valorização da produção científica local, a agroecologia, a economia criativa, o planejamento urbano, o uso de energias renováveis, uma política educacional perene e a participação popular. Sob pena de se reproduzir os voos de galinha de sempre: crescimento econômico instável, geração de empregos precarizados e uma institucionalidade autoritária.
Se a Confederação do Equador expressou o levante de parte considerável do Nordeste brasileiro contra os limites da Constituição monarquista de 1824, a centralização de poderes nas mãos de Dom Pedro I e a falta de autonomia do Brasil diante de Portugal e Inglaterra, que tenhamos a coragem de nos insurgirmos contra a milicianização da política brasileira, o desmonte do que ainda nos resta de Estado democrático de direito e a liquidação dos direitos sociais, antes que a destruição em curso se torne irreversível e a vitória da barbárie seja definitiva.
Edição: Monyse Ravena