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Belchior vive!

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Belchior é considerado um dos maiores expoentes da música brasileira
Belchior é considerado um dos maiores expoentes da música brasileira - Arquivo
Seu eco torna-se cada vez mais atual e necessário para a utopia da construção de uma pátria soberana

Há exatamente quatro anos, Antonio Carlos Belchior, um dos maiores personagens da história da música brasileira faleceu, assim como surgiu nos idos da década de 1970, um rapaz profundamente latino-americano e sem dinheiro no banco, depois de abandonar voluntariamente sua carreira, casa e carros de luxo em São Paulo, se refugiar no longínquo balneário San Gregorio de Polan, no Uruguai, para depois ir morar de favor na casa de desconhecidos na cidade de Santa Cruz, no centro do estado do Rio Grande Sul.

Inúmeras matérias em jornais, biografias e entrevistas com estudiosos do legado belchiorneano foram publicadas desde sua partida. Gostaria de destacar, em mais um texto e homenagem, sem desconsiderar a densidade e complexidade estética, literária e filosófica que atravessa o conjunto de seu trabalho musical, uma dimensão em sua trajetória que muitas vezes é secundarizada: Sua posição radical e visceral contra a miséria humana. Postura cada vez mais urgente nesse período de ameaças à democracia brasileira e retrocessos civilizatórios nos quais passamos.

Essa minha tese pode ser constatada de forma cristalina, desde seus primeiros discos, em assertivas e metáforas que demarcam explicitamente os dramas e dilemas enfrentados pelo povo brasileiro, “gente honesta, boa e comovida, que caminha para a morte pensando em vencer na vida”. No chamado à rebeldia contra as injustiças, já que “a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter, é nunca fazer nada que o mestre mandar, sempre desobedecer, nunca reverenciar”. E também na esperança que o “novo sempre vem”, a despeito da reprodução de visões de mundo e posturas conservadoras e reacionárias. Posição entoada de forma contundente, sem ser panfletária, arraigada por um lirismo e sensibilidade singulares, “canto torto feito faca”.

Posição amalgamada na fusão inquebrantável entre criador e criatura. De “jovem que desceu do norte e no sul viveu na rua”, depois de abandonar o prestigioso curso de medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) no último semestre, “pela simples alegria de viver”. Enfrentando a “metrópole violenta que extermina os miseráveis, negros párias, teus meninos”. E carregando sempre as lembranças remotas da vida interiorana, quando ainda “havia galos, noites e quintais”. Com sua densa formação clássica obtida no mosteiro de Guaramiranga com a ordem dos Capuchinos, “com diploma de sofrer de outra universidade, com fala nordestina e querendo esquecer o francês”. E pela decisão da reclusão, como quem está “sempre em perigo e a vida sempre está por um triz, com um coração delinquente juvenil, suicida, sensível demais”.

Me lembro, como se fosse ontem, do meu primeiro e último encontro com Belchior. Em 2007, num show na Praça do Ferreira, no aniversário da cidade de Fortaleza. E 10 anos depois, em 2017, em seu velório. Nessas situações opostas, além do porre que tomei em ambas e mesmo a diferença abissal de sentimentos atravessados, uma sensação comum de gratidão tomou conta de mim. Gratidão por embalar paixões, perdas, medos, ausências, euforias e revoltas, que sem sua trilha sonora não teriam o mesmo significado.

Numa realidade marcada pela proliferação de “violência, trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes, barbárie, devastação”, seu eco torna-se cada vez mais atual e necessário para a utopia da construção de uma pátria soberana, popular e “brasileiramente linda”.

*As frases entre aspas foram retiradas das seguintes canções, respectivamente: Apenas um rapaz latino americano; Pequeno perfil de um cidadão comum; Como o diabo gosta; Como os nosso pais; A palo seco; Fotografia 3x4; Baihuno; Galos, noites e quintais; Carisma; Tudo outra vez; Brincando com a vida; Baihuno, Brasileiramente linda.

Edição: Monyse Ravena