Ceará

Tradição

Dona Edite, mulher pode?

Ela criou e comanda o Coco da Batateira

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Filha de agricultores e nascida em 1940 na cidade de Bom Conselho no estado do Pernambuco, ela veio para a região do Cariri depois da seca de 1969. - Foto: Cauê Henrique

Dona Edite do Coco tem uma vida rica, diversa e de muitas lutas. Trabalha em várias frentes: agricultura, reza, política e criou o famoso Grupo de Mulheres do Coco da Batateira em 1979, tempo dos anos de chumbo e do Mobral. Ela nasceu no meio da roça – foi colocada nas primeiras horas de vida numa cesta de balaio - e até hoje a traz a agricultura em seu sangue. Cultiva em seu quintal plantas fitoterápicas: “as rezas, remédios, orações, essas coisas veio tudo da minha avó”, conta. Sempre pensou também na comunidade, no outro, e tornou-se militante política. Leia a seguir a história de Dona Edite.

Do Pernambuco até o bairro Batateira na cidade de Crato, Ceará. Edite Dias de Oliveira Silva, mais conhecida como Dona Edite do Coco, se aprochega com um abraço singelo e o olho apertado de tanto bem querer.  Filha de agricultores e nascida em 1940 na cidade de Bom Conselho no estado do Pernambuco, ela veio para a região do Cariri depois da seca de 1969. “Meu irmão morava aqui, morava dois irmão e um foi lá onde a gente morava, fazer uma visita la em nois. Ele achou tudo ruim demais, aqui num era muito bom, mas lá ainda era  pior. Aí ele convidou pra gente vir pra cá, que tinha umas casinhas para gente ficar e eu vim, nessa época eu tinha quatro filhos. Aí saimo no pau de arara pra chegar aqui no Crato”.

Carregando o marido e seus quatro filhos, chegou ao Crato sem eira nem beira. Depois de se instalar na casa onde vive há 22 anos no bairro Batateira, a família tendeu a crescer. Hoje, ela conta com seis filhos vivos dos dez que teve, nove  netos  e sete bisnetos. Todos criados dentro da casa que a família mesmo construiu.


Mestra Edite, durante o encontro de finalização do semestre do seu grupo de pesquisa, coordenado pela professora Renata Felinto dos Santos. / Foto: Jaque Rodrigues

Agricultura

Dona Edite, nasceu no mês de agosto, que lá no Pernambuco é o mês da fava. “Minha mãe tava apaiando fava, aí sentiu as dor pra mim nascer. Aí se locou lá num canto, ficou lá esperando pra ver se melhorava a dor, se melhorava a dor e a dor foi aumentando e menos um pouco eu fiz foi nascer”. A agricultura tá no sangue e no berço de uma cesta de balaio que ela foi colocada nas primeiras horas de vida. Edite traz na sua história a vida de agricultora, de pensar no outro e na terra.

Desde os sete anos, as crianças começavam a trabalhar. Vai começando de pouquinho. Semeiam uns carocinhos de feijão, plantam milho, tiram uns pés de mato e vão levando umas “cabada” de enxada pra aprender a fazer as coisas direito.

“A vida do agricultor é boa, mas também  tem hora que é cruel, quando da preguiça os pais metem a peia: ‘vamo trabalhar até crescer, pra ser homem, pra ser corajoso’ e eu agradeço é muito que se não hoje eu era uma molenga veia, num tinha criado tanto filho, criado os neto e os bisneto, porque é tudo comigo”.

Hoje em dia, a prática da agricultura ainda é presente na vida dela. As plantas fitoterápicas são cultivadas até hoje, entre as várias, podem ser encontradas no quintal de casa: capim santo, colônia, erva cidreira, manjericão, malva do reino, anador, sete dor e boldo do pará, pois “na hora da precisão eu não vou ir comprar, eu vou colher pra fazer”.

Reza 

Rezar, benzer e orar vem como lembrança de aprendizado e amor, “as rezas, remédio, oração essas coisas veio tudo da minha avó”. A fala se faz como sinônimo de agradecimento às mulheres que passaram e passam em sua vida, formando o seu saber de hoje. Os jovens também estão presentes no seu caminhar, ela conta que vai colhendo o que eles tem pra dar, e vai fazendo o dela. 

A necessidade fez com que as rezas fossem aprendidas, pois Dona Edite conta que logo quando seu primeiro filho nasceu, ele começou a pegar quebranto e olhado. “Ficava doentinho e na época a gente era muito de cuidar das doenças com reza, que os médicos era distante e era difícil e cadê dinheiro pra comprar remédio disso tudo, né?”.

Vó Censa, como era chamada, ensinou as orações e chás caseiros, “a minha avó tanto sabia rezar pra curar a doença, como também fazia chá para ajudar. Aí essas coisas que eu aprendi, foi com ela”. Edite ia na casa da avó para anotar os ensinos, anotava cada oração para família. A tradição continua.

Política

Filiada ao Partido Comunista Do Brasil (PCdoB), Dona Edite afirma que participa dos movimentos sociais e políticos desde que chegou aqui no Crato. O enfoque maior de suas reivindicações é no bairro Gisélia Pinheiro (antigo Batateira), “aqui tinha muita carência, era tanta carência muito mais do que a minha que eu ia ajudar a socorrer aqueles mais coitados. Juntava uma turma e a gente ia socorrer aqueles mais coitados”. Os mutirões eram bastante requisitados, ela conta da casa que ajudou a construir só com doações da comunidade para uma senhora que não tinha apoio financeiro de nenhum órgão ou instituição. A conta das casas feitas na época chegaram a sete, “parece mentira, mas não é”.

Os movimentos nas quais ela se envolveu foram vários. Quando não tinha o grupo de coco, existia a Associação das Mulheres do Crato, onde as reuniões aconteciam na casa das integrantes do grupo. Além deste, também existia o Núcleo de Mulheres da Batateira, que reivindicavam as necessidades públicas básicas, como saneamento básico, água e energia. Abaixo-assinados e manifestações eram recursos usados pela comunidade para irem atrás dos setores responsáveis.

Dona Edite afirma que a política é importante para que as pessoas elejam um representante que possa resolver o problema de todos, não os assuntos de interesse próprio “uma pessoa boa, competente e de trabalho”. Sobre a atual conjuntura, diz está insatisfeita.


Hoje ela é reconhecida pela Lei Estadual 13.842, de 27 de novembro de 2006, o registro dos “Tesouros Vivos da Cultura” no Estado do Ceará. / Foto: Jaque Rodrigues

Côco

O Grupo de Mulheres do Coco da Batateira surgiu na sala de aula do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), em 1979. A criação do grupo se deu a partir da necessidade de montar uma apresentação artística na Semana do Folclore na cidade do Crato. Dona Edite conta como as pessoas se organizaram para fazer essa apresentação “na minha sala nós era duas monitoras com duas salas de aula num salão só, só dividia com as cadeiras. Aí uma delas sabia dançar coco e eu tinha duas alunas que sabiam também”. Uma das alunas perguntou “porque dona Edite, nós num vamo fazer uma dança de coco?”. Ela conta que já sabia o que era dança de coco, mas que nem gostava, tinha era abuso, achava uma coisa muito cafona de velho, na época. Até que a mesma aluna que a chamou pra fazer a dança, disse que sabia cantar rodas de coco e ela se deu por vencida. Assim foi, fizeram “essas rodas de coco”. Começaram três dias antes, ensaiaram com os alunos e levaram para a Praça da Sé. “A apresentação foi linda”, afirma ela. 

O programa do Mobral foi desativado, mas mesmo assim o grupo continuou brincando na comunidade. As pessoas da Batateira iam chegando na casa dela pra dançar o coco e ela começou a criar gosto, até amar. Eloi Teles de Morais, conhecido como Seu Eloi, perguntou porque ela não fazia um grupo misto, com homens e mulheres. Entretanto, a ideia não foi bem aceita pelos maridos das brincantes. As mulheres do grupo não desanimaram, decidiram continuar o grupo do jeito que fosse. Seu Eloi então fez uma nova sugestão, disse que elas vestirem roupas de homens nas mulheres e dividisse a cena entre damas e cavalheiros, “todas acharam uma boa ideia, nossas primeiras roupas foram doadas”.

Atualmente, o grupo é composto por 17 mulheres, “quando vai saindo uma, só saí quando num pode mais dançar, já tem uma que tá com uns 84 anos e ainda tá dançando. Só remendando, mas ainda tá lá como um bebê, a gente leva, que é a primeira que aprendeu a dançar da escola. Tem duas que foi das primeira da escola. Tem a Socorro, mas a Socorro ainda ta nova, ta com uns 60 e poucos anos. Nunca saiu uma porque quer sair não. Já faleceram umas 4 ou foi 5, aí a gente substitui com outra”.

No início, passaram por situações delicadas, foram humilhadas nas apresentações por não aceitação das pessoas da comunidade, que as recebiam com murmurinhos e chegaram até a jogar “coisas” nelas. Já hoje, o grupo é bastante respeitado, convidado pra dançar em lugares diversos e com público certo. O apoio da família nesse processo foi importante, principalmente para continuidade da tradição, que fez com que algumas filhas e netas continuem dançando. O grupo de Coco Mirim hoje conta com oito meninas, criado em 2003, já foi misto, contudo atualmente é formado apenas por meninas. 

Pergunto o que o Côco significa para ela “mulher, pra mim significa muita coisa eu acho muito bom, eu me sinto feliz. A gente acha que tem muita gente feliz aqueles que aplaude, aqueles que rir e é uma terapia pra gente, quando a gente brinca coco é o mermo da gente ter vindo numa sala fazer a terapia. A gente vem bem maneiro, desestimula o estresse,  desestimula os ossos, os nervos. E é muito bom, eu acho ele uma maravilha”.

O grupo desenvolve oficinas de meizinha, fuxico e de fazer boneca de pano na comunidade, onde gera um ritmo de colaboração entre as moradoras. As músicas entoadas em suas danças, são feitas a partir das vivências delas, como também as roupas, que recebe influência da agricultura, onde muitas passaram. No meio de tanta informação, quando juntamos agricultura, política e reza dona Edite resume “tudo é cultura”.

E mulher, pode? Dona Edite em meio à risadas e com toda segurança diz “pode, minha filha. O lugar de mulher é onde ela quer, onde a mulher quiser se ela disser que o meu lugar é esse ela fica naquele lugar, ela só não pode ser bera de fogo pra não sair. Mas, o lugar da mulher é onde ela quer”.

Edite é conhecida como Mestra Edite do Coco. Hoje ela é reconhecida pela Lei Estadual 13.842, de 27 de novembro de 2006, o registro dos “Tesouros Vivos da Cultura” no Estado do Ceará. A lei reconhece os saberes e fazeres dos mestres e mestras da cultura tradicional e popular. Sobre ser mestra, Dona Edite conta que não gostava de ser chamada assim, pois pra ela todo mundo tem o mesmo saber.