As cidades do Cariri se encontram pelo caminho das águas. Começam por lagoas encantadas e transbordam em pedras que formam esse grande caldeirão. Aqui, saímos do tempo profano, cronológico e adentramos no universo das Iaras e serpentes. É assim, que no oeste caririense nasce a história da comunidade quilombola Lagoa dos Crioulos, distrito de Salitre, Ceará.
Véspera da semana santa, a meninada corria solta no meio da terra fazendo poeira e brincando de careta. O que mais valia, era a algazarra de tá na rua. Senhoras nas calçadas, bicicletas indo e vindo. Ali estava o cenário pronto para uma tarde de prosa com as narrativas das pessoas que se disfarçam de céu a noite e fazem os olhos virarem estrelas.
Se voltarmos ao tempo em que o astro rei era quem guiava as horas, compreenderemos o nascimento do povo dali. Cresceram no berço da mãe d’água cuja cantava na pedra bem no meio da lagoa, que situada na entrada da localidade, atualmente abastece as famílias em época de chuva. As árvores grandes que fazem sombras nas beiras, era lugar de sossego pro boi crioulo que deu nome à lagoa e ali margeava depois de desgarra-se de uma boiada que passava pela Chapada do Araripe, como um guardião.
O padre do vilarejo vizinho celebrava missa lá todo amanhecer e os trabalhadores das redondezas iam pedir coragem pra começar o afazer. Na época não havia casa alguma no lugar, apenas uma pequena barraca de dois homens caçadores. Julgando estarem tendo visões, se perturbaram com a ideia de atirar na sereia que os enfeitiçava com seu canto sagrado. Ouviram de longe os disparos. A mulher se encantou na pedra e junto dela foi-se o boi crioulo, não havia rastros.
Após três dias, o lugar foi descoberto como abundante e farto por gente de todo lugar. A riqueza estava diretamente ligada a pedra, onde a presença da sereia permanecia marcada. Tudo que possui preciosidade, a humanidade se assombra com a falsa necessidade de tirar uma lasca. Assim fizeram, os fazendeiros e caçadores arrancaram um pedaço da pedra e rapidamente saíram dali, deixando pra trás só as folhas secas no barro rachado do chão da lagoa.
A nova matriarca
Chegamos na casa de Dona Maria Grosso com olhos sonolentos de pós-almoço e dia chuvoso. Mesmo com os tantos detalhes do lugar, não me detive a um que fugisse do sofá onde estava sentada a senhora com seu vestido de botões, todo cor de rosa. Nascida e crescida na Lagoa, conta que seus pais “nascero ali pro lado do Sítio Tanque Novo”. Após anos, se mudaram pras terras da Lagoa dos Crioulos dizendo que os brancos estavam precisando de morador para cuidar do plantio. Sobrevivendo das roças de mandioca, feijão e milho, criaram seus dez filhos na labuta e resistência.
“Eu tem quais cem ano”. A sensação era de que de fato, tinha pra depois dos cem. Afirma não saber porquê tanta procura por ela pra contar a história do lugar, relembrando com saudade da companheira Maria do Céu que faleceu em 2013, “ela era nossa mãe”. Hoje Maria Grosso é considerada a nova matriarca da comunidade. A pele enrugada não só conta todas as andanças da mulher, mas irradia a força das noitadas de lua cheia que passou ao redor das fogueiras dançando toré.
“Sabiá dunderudê, sabiá
ô sabiá dunderudá, sabiá
e quem num gosta de nois dois, sabiá
e de quem diabo quer gostar, sabiá
rodô, trocô, sabiá
balance eu, sabiá”
O verbete toré no Nordeste está para uma dança cantada, de origem indígena. Registra-se também que os quilombolas do alto sertão de Alagoas dançavam o toré ainda na década de 1930. Atualmente, na cidade de Potengi, Ceará, que fica apenas à 52km de distância de Salitre, a comunidade quilombola Carcará busca resgatar as tradições cultuadas em seu território pelos mais velhos, e isso inclui o toré, que afirmam ter sido trazido por pessoas que se mudaram para lá no século XIX. Já na Lagoa dos Crioulos, outros processos nascem. O reconhecimento é o primeiro e maior passo que vem sendo trabalhado.
Maria Grosso cantava como se tivesse puxando o fio condutor de todas as memórias do seu povo, falou que na brincadeira “um ia e soltava aquele, pegava os outros lá na frente, tudo dançando”. Eram noites e mais noites. Quando a perguntei sobre seus filhos, ela responde “perdi a conta”. Ao final de ir e vir nos dedos contando por nome, número ou até mesmo jeito, lembrou que ao todo foram quinze, mas “só ficou viva duas”.
Ser remanescente quilombola pra Dona Maria é ser feita pronta pra tudo. “Eu era pega neném, pegava, mas a vista hoje não dá mais não, me assombrei”, parteira desde os 16 anos, compartilha que muitos meninos da Lagoa escorregaram pro mundo pelas suas mãos. Com olhos distantes, relata quantas mulheres já se foram com “suas cria” por terem sofrido violências durante a gestação e diz que “é tanta gente trabaiadora tá virando terra debaixo do chão”.
“Aqui começou tudo depois que descobriram que aqui é uma comunidade quilombola, tá ouvindo os galos aí cantando? Pois era do mesmo jeito antes, só os galos cantando”. Cerca de 320 famílias residem atualmente na Lagoa dos Crioulos e são acompanhadas pela Cáritas da diocese de Crato. Maria Grosso conta que pra se reconhecer como quilombo precisa se sentir pertencente à terra independente de papel e depois enxergar todo mundo ali como família, “é tudo sangue do mesmo sangue”.
Dona Maria carrega uma vitalidade imensa. O histórico de opressões vividas naquele corpo, mente e coração fazem com que hoje relembre tudo em um misto de desgosto e alegria, pois como ela disse “sobrevivi, mesmo que ainda essa noite eu não sabia onde tava”. A memória já falha à cabeça, mas por si, a senhora das luaradas já é uma memória viva. Cheia de esperança, enche o peito de quem passa por lá. Agora entre sem pedir licença, que ela vai lhe receber com um “tá entrando sem pedir permissão, bicho da cara lisa? Eu tô é esquecida né cega não”.
Eu rezo em nome dos santos
“Quem chegar aqui em casa eu rezo”, assim nos recebeu Expedita Tereza. Nascida e crescida na comunidade do Sítio Arapuca, aos 77 anos conduz os ramos de aroeira que tecem um fio invisível, poderoso, unindo as dores dos homens. Na parede da sala, Yemanjá casa com Frei Damião, São Francisco e João Paulo II. Quando pergunto em nome de quem ela puxa a reza, sem exitar me diz que “eu rezo em nome dos santos”
No Cariri Cearense o ofício no ramo é uma prática constante. Em sua maioria, sobrevive aos tempos através da oralidade, ou surge pela necessidade da família ou comunidade, como foi o caso de Dona Expedita. “A fome traz muita mazela e meus filhos viviam doentes por falta de comida e das comidas ruins, então precisava alimentar por outra veia, a da oração”. Em meio ao adorno seco do chão, está a chama da sabedoria popular das rezadeiras, curando com suas preces numa simbiose da natureza da terra com o astral.
A imagem dessas mulheres se constitui como um vitral que agrega a efervescência espiritual despida das materialidades terrestres, expressando uma procissão de símbolos que mesmo estando dentro de uma tradição católica, extravasam esse universo. No alto da parede da sala da frente, a imagem de Yemanjá ganha destaque, quando pergunto qual a ligação dela com a entidade, ela conta “eu acredito em yemanjá, ela num tá aqui, num sei contar a história dela bem contada não, mas eu sinto”. Dona Expedita explica ainda que os ramos retirados para rezar, nunca podem ser da rua, tem que ser do quintal de casa, quando pedi que rezasse em mim, a mulher com o semblante de surpresa me indagou “será que a senhora sente alguma coisa se eu rezar?”. Senti.
“Aqui, muito conhecida é a Mãe Aparecida dos Crioulos, rezo com ela”. A santa que há 300 anos foi encontrada no Rio Paraíba do Sul, é quem abençoa a vida e resistência desse povo. Seu dia é o 13 de maio, se Nossa Senhora de Fátima estava a aparecer pros pastorinhos na Cova da Iria, a Senhora dos Crioulos vinha pela correnteza de um rio a ser achada. Atualmente, na capela que abre as portas da comunidade, há sua imagem esculpida em madeira e é lá que os festejos anualmente rendem honras a Mãe Aparecida. “É festa grande. Tem reisado, quermesse, vem gente de fora, enfeitam tudo, não perco uma, lembro de quando Maria do Céu tava entre nós e era quem liderava tudo, era ela que sabia contar as coisa tudo daqui”, diz dona Expedita me mostrando em sua parede uma foto das duas mulheres abraçadas com olhos sorrindo e braços dados.
“Filha, mas não é só de reza que se vive e eu precisava ganhar, que eu num tinha quem me desse”. Como já dizia minha avó, o trabalho é a primeira oração dada ao mundo por Deus e lá na Arapuca, o sustento de muitos vinha das farinhadas em cima da serra. Expedita conta que “trabalhava raspando mandioca” e que desde nova, todo “trocado” que recebia, dava uma parte aos seus pais, pois naquele tempo, não tinha aposentadoria e “a idade chega mais cedo pra quem é maltratado pelo tempo”.
Quando a pergunto se ela dançou toré, seus olhos se dirigiram pro homem que estava encostado na porta sem trocar uma só palavra. Aquele ali era quem Expedita divide sua vida há 56 anos. “Zé, tu lembra das rodas grande, uns segurando na mão e os outros dentro da roda dançando?”, a mulher conta que mesmo depois de passar o dia trabalhando, tinha energia pra celebrar. Peço então que cante pra mim alguma das músicas e ela entoa:
“Fulô do i, fulô do a
Vamo apanha maracujá
Fulô do i, fulô do a
Vamo apanha maracujá
E ela tire, tire eu, tire eu, tire eu
E ela tire, tire eu, tire eu, tire eu”
O canto tende a ficar mais baixo e aos poucos para pelo corte da lembrança. Da porta de saída ficou gravada a imagem de um quadro, onde dos pés a cabeça tons de verde e azul se misturavam dando forma a Expedita.