Ceará

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Nordestino sim, nordestinado não.

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"Tais narrativas, põem uma cortina de fumaça sobre o verdadeiro problema que deve ser enfrentado: a questão da desigualdade regional" - Rovena Rosa/Agência Brasil
Do intelectual mais refinado ao cidadão mais humilde, a simplificação e homogeneização dessa região

Uma referência que quase sempre me incomoda é a que fazem ao Nordeste. Do intelectual mais refinado ao cidadão mais humilde, a simplificação e homogeneização dessa região são reproduzidas de forma caricatural nos mais diversos ambientes, sobretudo, por sujeitos e veículos de comunicação que não são nordestinos.

Lembro de duas situações que representam bem essa minha problematização, no período em que morei na cidade do Rio de Janeiro. A primeira foi em uma aula do doutorado, quando uma excelente professora, ao fazer uma reflexão acerca da diversidade linguística no Brasil comparou o sotaque de amigas, uma do interior de Goiás e outra do “Nordeste”. Indaguei de qual estado a sua amiga nordestina era, desatacando a pluralidade de sotaques da região, o que acabou gerando um debate na sala, que tinha recebido o exemplo de homogeneização da docente com a maior naturalidade.

A segunda foi num táxi. Durante a clássica conserva na viagem, o motorista, percebendo que eu não era carioca, perguntou qual minha naturalidade. Ao me identificar como cearense, o simpático taxista disse, entusiasmado, que adorava o “Nordeste”. Lembrou de uma excursão que fez a Porto de Galinhas (PE) e Maragogi (AL), pelo que me recordo, em lua de mel com a esposa. A visita à duas cidades praianas o permitiram adorar toda uma região.

Poderia citar inúmeros outros casos de referências e indicações inoportunas sobre o “Nordeste”, não só na cidade maravilhosa, que expressam esse olhar distorcido sobre a região. Além dessa violência simbólica, esse desprezo, que também assume contornos mais agressivos como ser chamado, em tom jocoso, de “paraíba” e “baiano”, possui seu lado odioso. Da “carreira” que levei por um grupo de skinheads em Brasília ao trabalhador espancado em alguma rua de São Paulo, pelo único fato de sermos “nordestinos”, expressa uma das dimensões do autoritarismo no Brasil das mais complexas.

Quem não lembra dos comentários agressivos que tomaram de conta das timelines, feeds de notícias, stories e grupos de WhatsApp após o resultado das eleições presidenciais de 2014 e 2018? As derrotas de Aécio Neves e Jair Bolsonaro para Dilma Roussef e Fernando Haddad, respectivamente, em todos os estados do Nordeste, foi gatilho para uma série de ofensas e acusações acerca da qualidade do voto da população nordestina, relacionado à ignorância, miséria e outras associações risíveis.


Gráfico da divisão dos votos no segundo turno das eleições presidenciais de 2018 / Gazeta do Povo

Essa espécie de xenofobia interna brasileira, muitas vezes, é camuflada por piadas, brincadeiras e até por uma espécie de exotismo ou romanização enviesada sobre o que é o Nordeste e o modo de vida de seus habitantes, dando um ar mais sútil aos preconceitos e análises rasas acerca da realidade. Esse olhar é alimentado por estereótipos forjados pela grande imprensa, por telenovelas, pelo cinema e mesmo pela literatura nacional, que retratam historicamente essa região pela imagem do atraso, econômico, político e cultural.

Tais narrativas, põem uma cortina de fumaça sobre o verdadeiro problema que deve ser enfrentado: a questão da desigualdade regional, que caracteriza o padrão do desenvolvimento capitalista dependente no Brasil. Os dados do IBGE (2019) sobre à contribuição relativa para a pobreza no Brasil por região são reveladores.


Contribuição relativa para a pobreza no Brasil / IBGE/2020 / IBGE/2020

A concentração de pessoas que vivem em situação de pobreza no Nordeste é a mais elevada entre as cinco regiões brasileiras. O levantamento aponta que a região concentra um valor proporcional a 47,9% da concentração da pobreza no Brasil. Em seguida, vem a região Norte, com 26,1%. O Sudeste é a terceira região, com 17,8%. Por fim, Centro-Oeste (2,5%) e Sul (5,7%) apresentam as menores taxas percentuais do país.

Nesse sentido, combater e superar visões e argumentos que padronizam uma região caracterizada por uma diversidade social, cultural e geográfica singulares, é um passo fundamental para a desconstrução de preconceitos que naturalizam e justificam a assimetria entre as regiões brasileiras e as violências geradas por ideologias xenófobas e neofascistas.

Para isso, a afirmação do poeta sertanejo, Patativa do Assaré, que dá nome ao artigo, não se confunde com determinados regionalismos, criados superficialmente para hierarquizar e rotular estados, culturas e identidades. Representa, na verdade, o oposto disso: a leitura crítica acerca das determinações que geram essas discrepâncias regionais ao mesmo tempo em que afirma a  criatividade e altivez de um povo, mesmo que sofrido, dono do seu destino.
 

Edição: Monyse Ravena