Ceará

Tradição

Entrevista | Como os "ex-votos" ganharam força e viraram tradição religiosa no Ceará?

Para falar sobre o assunto, o Brasil de Fato entrevistou a historiadora Dia Nobre

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Os ex-votos podem se apresentar em formar de pintura, desenho, figuras esculpidas em madeira, em argila, em cera, entre outras formas. - Foto: Sesc-SP

Os ex-votos são práticas religiosas muito comuns em nosso estado, principalmente nas cidades de Juazeiro do Norte e Canindé, locais onde concentram diversas manifestações religiosas como, por exemplo, as romarias. Mas de onde vem a prática dos ex-votos? Como ele se estabeleceu no Brasil e, principalmente, no nosso estado. Para falar sobre o assunto, o Brasil de Fato entrevistou a historiadora, escritora e professora da Universidade de Pernambuco (UFPE), Dia Nobre. Confira.

Brasil de Fato – Gostaria que você explicasse o que são os ex-votos? E qual a origem do nome?

Dia Nobre – A palavra ex-voto vem do latim, na sua acepção completa era "Ex-Voto Suscepto", que significa um voto realizado e ele indicava o cumprimento de uma promessa, ou de um voto que um fiel tivesse estabelecido com alguma deidade. Então é uma prática, na realidade, muito antiga. É uma prática que remonta a antiguidade. Não é uma prática específica do interior do Ceará, nem do Brasil, ela é uma pratica que foi trazida para o Brasil junto com o processo colonizador e ela é uma expressão de devoção que, tradicionalmente, ela se inicia na forma de pintura e desenho, depois ela vai se apresentar em figuras que são esculpidas em madeira, em argila, em cera. Muitas vezes também elas representam partes do corpo que foram curadas por determinadas promessas, às vezes o corpo inteiro. Mas o ex-voto, ele pode ser também um objeto, ele pode ser uma camisa de time de futebol. É muito comum na Casa dos Milagres, lá em Juazeiro do Norte, a gente ver camisas dos jogadores que eram da região e que conseguiram crescer na profissão, então eles entregam a camisa. Você vê também fotos, você encontra discos, Então o ex-voto não necessariamente é uma figura esculpida, uma escultura, ele pode ser qualquer objeto que representa essa promessa realizada, essa graça alcançada. E aí isso é algo que a gente vê realmente desde os primórdios do cristianismo, essa devolutiva, digamos assim, do fiel, porque se a gente for pensar na religião como um todo, a estrutura religiosa ela é forjada na experiência de trocas simbólicas entre a divindade e o fiel. No cristianismo e mais especificamente no catolicismo isso vai se manifestar muito na ideia da promessa.

Brasil de Fato – Você disse que essa não é uma prática específica nossa. Você pode falar mais sobre isso? Onde mais ela é realizada?

Dia Nobre – Então, como eu falei, essa prática não é uma prática originária do Ceará, muito menos no Brasil, é uma prática que ela vem trazida pelos portugueses. Hoje no Brasil a gente tem grandes centros de coleções de ex-votos e o maior deles é em Minas Gerais, não é no Ceará, por incrível que pareça. A gente tem essa prática em vários países da América Latina como: Argentina, Chile, Paraguai, enfim... É uma prática muito comum as práticas católicas.

Brasil de Fato – Na sua opinião, por que os ex-votos ganharam força em nosso estado?

Dia Nobre – No Brasil ganhou bastante força muito por conta de como foi feita a colonização no Brasil. Se a gente for pensar no caso específico do estado do Ceará, ele tem uma peculiaridade no que diz respeito ao processo de evangelização. Primeiro, foi um processo de evangelização tardio. A gente chama um processo tardio. Ele vai se dar no final do século 16 e início do século 17, e ele é feito em sua maioria, sua grande parte por missionários Capuchinhos. Os capuchos são a Ordem Terceira de São Francisco, então eles são, vamos dizer, uma ramificação dos padres franciscanos, e uma grande marca dos padres Capuchinhos é essa ideia de uma devolução muito intensa muito exacerbada. Para os Capuchinhos, a forma de você chegar aos céus, conseguir a salvação era através do sacrifício, do flagelo, da penitência. Então no Ceará a gente vai ter essas práticas penitenciais exacerbadas nesse processo de evangelização. Isso vai perdurar até o século 19 com um processo que a gente chama de romanização, que é um processo que o Vaticano inicia com o objetivo de coibir, digamos assim, ou de controlar melhor essas práticas penitenciais que muitas vezes eram práticas bem violentas.


A Romaria de Juazeiro do Norte, especificamente, ela começa a partir de um fenômeno que é conhecido como o “fenômeno da transubstanciação eucarística”. / Foto: Prefeitura de Juazeiro do Norte

Brasil de Fato – Aqui no estado temos a prática das romarias, que anualmente reúne milhares de romeiros que se encontram para fazer e pagar promessas. Historicamente, qual a relação dos ex-votos com as romarias?

Dia Nobre – A Romaria de Juazeiro do Norte, especificamente, ela começa a partir de um fenômeno que é conhecido como o “fenômeno da transubstanciação eucarística”, que é realizado por uma mulher chamada Maria de Araújo e que tem uma participação muito forte do Padre Cícero Romão Batista, que é um padre da cidade do Crato que foi formado no Seminário da Prainha, em Fortaleza, mas que volta para atuar no Crato, e lá ele vira diretor espiritual de várias beatas, inclusive da beata Maria de Araújo. É um fenômeno que vai acontecer com ela durante mais de dois anos, então o fenômeno, o milagre não é do Padre Cícero, o milagre é da beata. E aí eu pesquisei, inclusive, nos arquivos da Congregação para a Doutrina da Fé no Vaticano e todo o processo que vai pensar esse milagre de Juazeiro e, inclusive, que vai condenar o milagre. Em todo o processo, quem tá no foco é a beata Maria de Araújo. Inclusive, a minha tese é justamente que há um esquecimento social e historiográfico sobre a figura da Maria de Araújo que privilegia o Padre Cícero. Então você tem um apagamento da mulher e você tem o padre colocado no lugar dela.

E aí eu não questiono o fato de ele ser um homem que realizou outras práticas e trouxe outras questões que contribuíram para a crença, mas naquele momento, a romaria se estabelece em devoção ao sangue precioso da hóstia que a Maria de Araújo comungava, só que, como a igreja condena esse fenômeno e condena a Maria de Araújo, ela é condenada inclusive a uma reclusão, uma espécie de reclusão domiciliar no qual ele é proibida de circular e no qual fica proibido de se falar sobre os fenômenos, o Padre Cícero acaba tomando a frente disso e, como ele era um devoto, ele realmente acreditava que o fenômeno da hóstia era um milagre. Padre Cícero começa a ganhar visibilidade e ele começa a instituir algumas práticas as quais ele era também devoto.

Ele era um homem muito letrado, um homem muito inteligente, e ele vai trazer várias práticas que vem, não só da formação institucional dele no Seminário da Prainha, mas que vem também de uma formação empírica da prática mesmo cotidiana com os fiéis, com os devotos, etc. E quando ele se torna esse santo popular e começam a aparecer muitos relatos de graças alcançadas devido as orações feitas a ele, se começa uma prática de agradecimento dessas graças alcançadas através dos ex-votos. Então é daí que surge o museu dos Milagres, a Casa dos Milagres lá em Juazeiro do Norte que, inclusive, teve um incêndio que destruiu boa parte do acervo que eles tinham lá. Grande parte do acervo hoje tá no Museu Casa do Padre fica no centro da cidade de Juazeiro do Norte.

Em Canindé você vai ter a romaria direcionada para São Francisco que é um santo penitencial, o santo que tem fenômenos.  Ele tanto apresenta o fenômeno dos estigmas como das viagens espirituais também. Então tudo está entrelaçado porque tudo são práticas relacionadas a uma forma de viver o catolicismo que é uma forma mais penitencial e é uma forma que aproxima mais o fiel do santo. Se eu pudesse conceituar o que seria esse catolicismo penitencial e o que seria o catolicismo institucionalizado a diferença é muito simples. No catolicismo penitencial o fiel não precisa da igreja para se relacionar com o santo, ele faz a promessa diretamente ao santo e ele paga a promessa diretamente ao santo. E no catolicismo institucionalizado, a igreja media todo o processo. Então você passa pela igreja, você não chega mais diretamente ao santo.  Você vai à igreja, paga o dízimo, comunga, vai fazer confissão. Então você vai celebrar todos os ritos da igreja para poder ter a sua salvação. Então basicamente é essa a diferença.


Romaria na cidade de Canindé, no Ceará. / Foto: Davi Pinheiro

Brasil de Fato – Você tem dicas de leituras e documentários sobre o tema? Quais?

Dia Nobre – Posso recomendar dois documentários. Um deles se chama “O Milagre que fez”. É um documentário que tem como foco específico os ex-votos em Portugal. Mostra as origens dos ex-votos, as práticas dessas penitências lá em Portugal. Tem um outro documentário que não é diretamente sobre os ex-votos, mas que eu gosto bastante porque fala um pouco dessas práticas de agradecimento não ao santos, mas às almas, que é o “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, que é sobre o cemitério, mas que vai mostrando como esse aspecto dessa religiosidade mais penitencial que algumas pessoas chamam de religiosidade popular, justamente porque são práticas que se desenvolvem diretamente entre o fiel e o santo ou entre o fiel e as almas. Então são dois documentários bem interessantes para você pensar essa questão da religiosidade. E como leitura eu indico o livro do Luis Américo Silva Bonfim, se chama o “Signo motivo católico no nordeste”. Ele faz um mapeamento dessas práticas no Nordeste. É a tese de doutorado dele. A Laura de Mello e Souza, que é uma historiadora muito importante também tem um trabalho sobre os ex-votos mineiros num livro chamado “Norma e conflito”. Tem um capítulo nesse livro só sobre os ex-votos mineiros, das práticas que se desenvolvem lá.  Existe também um Acervo do núcleo de pesquisa dos ex-votos, que esse acervo está online e ele vai ter fotos de acervos de madeira, parafina, etc. Eles tem projeto, tem colóquios.  

Para finalizar, gostaria de indicar a leitura da minha tese de doutorado que foi publicada em forma de livro pela Editora Multifoco, que é uma editora do Rio de Janeiro. O livro chama “Incêndios da Alma”. O ganhou o prêmio Capes de Teses, e nele eu trato todo o contexto sócio histórico e político do Ceará no século 19, que vai culminar nos fenômenos religiosos de Juazeiro do Norte e como isso vai reverberar também no mundo católico de uma forma mais geral. Trabalhei com arquivos do Vaticano. Morei na Itália durante um ano e fiz pesquisas nos arquivos da Congregação Para a Doutrina da Fé, que é o arquivo que substitui o Santo Ofício e em um arquivo secreto do Vaticano aonde eu pesquisei uma documentação inédita que é muito pano para manga para a gente entender como é que a religião no Ceará se estabeleceu. Então eu não só trato do caso da Maria de Araújo, mas também trago esse contexto da religião no estado do Ceará.

Edição: Monyse Ravena