Haja paciência para se assistir um jogo de algum torneio de futebol no Brasil. Mesmo selecionando, acompanhar um bom duelo futebolístico é uma missão quase que inglória atualmente. Chutões, lançamentos diretos, chuveirinho na área, passes errados, jogadas previsíveis, placares tímidos, lamentavelmente dominam as quatro linhas dos campos brasileiros.
Neste cenário, Rogério Ceni está à frente de um clube com um dos elencos mais limitados tecnicamente e com uma das menores folhas de pagamento dentre os times da série A. Mesmo assim, tem feito um trabalho com reconhecimento quase unânime pela crítica e especialistas na área.
Desde que aportou em terras alencarinas acumula uma série de conquistas que o alçaram ao patamar de maior técnico da história do tricolor cearense, dentre elas: o título do Brasileirão da série B de 2018 e o consequente acesso à elite do futebol nacional; o campeonato estadual e a copa do Nordeste em 2019 e a participação do Fortaleza, pela primeira vez, numa competição internacional (Copa Sulamericana, em 2020).
Com mais de 1000 dias à frente do Leão do Pici, é o segundo técnico com maior tempo de trabalho em andamento num mesmo clube no Brasil, atrás apenas de Renato Gaúcho, no Grêmio. A aprovação pela torcida e pela imprensa esportiva pode ser facilmente compreendida se compararmos o trabalho desenvolvido por Ceni com o da esmagadora maioria dos seus adversários.
Com a naturalização do mantra “o importante é vencer e não jogar bonito”, seguido religiosamente por 99% dos técnicos brasileiros nas últimas duas décadas, em conluio com importantes setores da mídia “chapa branca” e com a chancela da máfia que controla a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a partir de suas rodas de amigos e programas televisivos, nosso futebol chegou num verdadeiro estado de miséria.
Miséria tática, com a estagnação dos padrões de jogo, com atraso do uso das tecnologias para a qualificação técnica e física dos jogadores, com o desdém que os treinadores brasileiros têm com a qualificação e a formação permanente, dentre outras questões, impõe aos nossos times e à própria seleção canarinho um descompasso quilométrico com o futebol europeu. Seguindo esse caminho, a sombra dos 7 x 1 nos acompanhará ainda por muito tempo.
Miséria organizacional, com a perpetuação de gestões corruptas e pouco profissionalizadas dos clubes e federações, com os calendários de jogos inchados e campeonatos sem planejamento adequado, com a repetição da novela de atrasos salarias, com a ausência de um trabalho sério e contínuo nas categorias de base, salvo raríssimas exceções, com o desprezo e falta de apoio ao futebol feminino, revelam a atuação vergonhosa e arcaica dos cartolas tupiniquins.
Miséria ética, sendo emblemático o caso dos “garotos do ninho do Urubu”, em que 10 jovens jogadores morreram num incêndio nas instalações de um dos centros de treinamento do Flamengo, em 2019, conduzido pela diretoria do time de forma mercenária e errática. Pela forma como ocorreu o retorno do futebol durante a pandemia, de maneira atropelada e precoce, com articulações pelo alto entre dirigentes de grandes clubes, CBF e governo federal. Pela alienação e indiferença geral dos atletas diante das contradições sociais e políticas que assolam o país, salvo também raríssimas exceções, como o finado Bom Senso Futebol Clube.
Voltando ao protagonista desse texto, o fato de Rogério “tirar leite de pedra”, mantendo o Fortaleza numa boa colocação no campeonato brasileiro deste ano, enfrentando de igual pra igual equipes que disputam a parte de cima da tabela (inclusive vencendo os líderes Internacional e Atlético Mineiro), consolidando um padrão de jogo moderno, ofensivo e dinâmico, potencializando as qualidades técnicas de jogadores medianos, mesmo com recursos escassos, demonstra que é possível aliar resultado com jogo bem jogado.
Tais feitos, aliado ao descrédito do trabalho de treinadores consagrados em um passado recente, como Felipão, Luxemburgo e Mano Menezes, e à inconsistência do desempenho de técnicos mais jovens, como Fernando Diniz, Tiago Nunes e Roger Machado, fazem com que renomados jornalistas e cronistas esportivos tenham anunciado Rogério como o melhor técnico brasileiro em atividade.
Não afirmei no texto e não tenho expectativas de que o ex-arqueiro seja o grande representante de um necessário, e urgente, movimento que nade contra a maré da miséria do futebol brasileiro. Porém, do ponto de vista tático, sim. Ceni já é referência fundamental para uma nova geração de técnicos que precisa ser forjada urgentemente no Brasil.
Não à toa, as três melhores equipes do campeonato brasileiro são comandadas por estrangeiros, os argentinos Jorge Sampaoli e Eduardo Coudet, e o espanhol Domènec Torrent. Tendência que deve se perdurar ao longo de toda temporada. Obvio que esses times possuem elencos milionários e altíssimos investimentos, mas outros como o “Trio de Ferro” paulista (Corinthians, Palmeiras e São Paulo), que também estão no Top 5 das folhas de pagamento, por exemplo, hoje estão longe de ameaçarem a superioridade dos gringos e reproduzem aquele futebol vergonhoso.
Sorte dos torcedores do tricolor de aço que, mesmo não brigando pelo título do campeonato brasileiro, pelo menos veem seu time lutar, com seus limites e fragilidades, mas sob o comando de um técnico qualificado e audacioso, um bom combate contra os cânones miseráveis enraizados no nosso esporte mais popular.
*Sociólogo, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e militante da Consulta Popular.
Edição: Francisco Barbosa