O documento intitulado “Características gerais das mulheres privadas de liberdade no Ceará – 2014 e 2019”, com dados levantados pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Estado do Ceará (Ipece), divulgados em agosto deste ano, informa que a população presidiária feminina do Ceará, segundo a cor da pele ou etnias, é formada em sua maioria por mulheres pardas e negras tanto no ano de 2014, como em 2019. Em 2014, a soma dos dois grupos, de acordo com a pesquisa, era de 86%, já em 2019 esse número tem uma leve queda para 85%. Mesmo com essa diminuição da porcentagem os números ainda são expressivos.
Maria Raiane, vice-presidente do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec) e integrante da Rede de Mulheres Negras de Ceará, explica que o perfil das mulheres negras que estão presas no Brasil e no Ceará é de mulheres periféricas, pobres, que não tiveram oportunidade, não estudaram, e muitas não terminaram o ensino médio. “Eu defino essa situação das mulheres negras encarceradas pensando o racismo e não-reparação. Tudo que aconteceu com a população negra desde o período da abolição. Da falsa abolição, na verdade.”.
Sobre a situação das mulheres negras encarceradas, Sarah Menezes, educadora popular do Instituto Negra do Ceará (Inegra) diz que “o cárcere é uma ferramenta desse sistema judiciário de intensa seletividade racial, e tem sido retrato de uma sociedade punivista que criminaliza usuários numa falaciosa ‘guerra às drogas’. Cerca de 62% das mulheres estão presas por tráfico ou suposta ligação ao tráfico”. De acordo com ela, para as mulheres, além de representar essa injustiça misógina e racista, o cárcere representa a solidão, pois muitas não recebem visitas. Sendo as famílias as maiores provedoras de insumos, essas mulheres contam apenas com o Estado e organizações da sociedade civil para lhes assegurar os materiais de higiene, alimentação e medicamentos.
Já Isadora Oliveira, advogada e presidente da Comissão de Defesa da Mulher da OAB Crato afirma que a situação das mulheres negras no cárcere é a situação de todas as pessoas que estão no cárcere neste país. “A gente sabe que o racismo ele é institucionalizado e corrobora para que mulheres negras, pretas e pardas entrem com mais facilidade no sistema carcerário, entretanto, depois que se está lá a situação é degradante para todas”.
Ressocialização
Questionada sobre quais trabalhos de ressocialização são realizadas com as mulheres, a Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará (SAP) informou por meio de sua assessoria de comunicação que “As internas do sistema penitenciário do Ceará recebem vários projetos diferentes, desde os cursos de qualificação realizados em parceria com o Senai e Mulheres do Brasil, passando pelas aulas de educação formal, cursos culturais de música e canto, além de trabalho industrializado”. Sarah informa que atualmente o Inegra tem apoiado as articulações de familiares e redes que debatem e pensam políticas para o desencarceramento e uma segurança pública que não tenham corpos negros como alvo.
Raiane já mostra um outro lado desse trabalho de ressocialização. Ela diz que é importante falar sobre o processo de “não-ressocialização”. “Não tem como a ressocialização existir se essas mulheres, quando elas são detidas elas tem uma ficha que prova que passaram pela situação do cárcere, então essas mulheres voltam para o subemprego, para a criminalidade, para a margem. ”.
Em meio à pandemia
Sarah Menezes, diz que desde o início do ano passado as prisões cearenses são reflexos de uma política que escanteia os direitos humanos e os protocolos nacionais e internacionais que tem o intuito de prevenir as violações e torturas no cárcere. Nesse período da pandemia, de acordo com ela, esse descumprimento se agravou com a ausência de informações e transferências ilegais.
Isadora Oliveira afirma que a questão do coronavírus afetou diretamente as pessoas encarceradas, porque as visitas estão suspensas, o que tira esse contato, esse convívio, essa humanização que a detenta tem direito, que é a da visita das famílias, além disso, ainda tem o medo do contágio pela covid-19. “Além de quê, tem a questão do medo. Porque você tá lá detida, você tá presa com outras pessoas, se houver um contágio vai ser um contágio em larga escala, entretanto, na cadeia daqui, da última vez que eu conversei com a diretora, estava controlado e não tinham tido surto. Nós inclusive fizemos uma doação para que as detentas confeccionassem suas próprias máscaras”.
Abordagem policial na pele
Raiane fala um pouco sobre como é a atuação da polícia quando se trata de abordagem contra mulheres negras. Ela explica que a polícia é algo que foi feito para proteger as pessoas e, de certa forma, as pessoas se sente com mais medo quando vêem a polícia. “É incrível porque a gente sabe que a polícia nas ruas tantos jovens negros vão ser exterminados, tantas abordagem vão ser feitas, tantos jovens negros vão apanhar...”
“Quando tava na praça chegou vários policiais, eu estava lá com uns amigos e tudo o mais, abordaram os homens, isso só policiais homens. Abordaram os homens e aí quando foram abordar as mulheres eu tava lá, abriram a minha bolsa, mesmo sabendo, e mesmo eles sabendo que só uma policial mulher poderia abrir minha bolsa, eles abriram né? e eu, tipo assim, eu não poderia dizer nada, a gente até diz quando tem muita gente né? “olha, não pode abrir não, porque só quem pode abrir a bolsa é uma policial mulher”. E aí, enfim, os policiais tiram onda porque eles vão dizer que a gente sabe demais: “ah, tá sabidinha, sabe muito.”, e aí abrem a bolsa, jogam as coisas tudo no chão, humilham a gente, e é isso, assim. É esse o cenário, sabe? Quando não é pior! Quando bate e etc.”
Cariri
Isadora Oliveira diz que há um ano e meio atrás foi realizado uma reorganização carcerária no Estado do Ceará e o presídio do Crato passou a ser um presídio regional. De acordo com ela, a cadeia pública do Crato costumava a não ter mais de 20 mulheres encarcerada e hoje existem mais de 100 mulheres. “Quando foi feita essa reorganização houve uma transferência tão exorbitante que chegou até lá 220 mulheres em média. Nós fizemos o mutirão carcerário”. Ela afirma que com a realização do mutirão carcerário essa lotação teve uma diminuição dos números. “A gente conseguiu diminuir pela metade o número de detentas”. Isadora explica que participaram do mutirão a OAB, a Defensoria Pública e a Universidade Regional do Cariri. “Nesse mutirão, nós atendemos a todas, fizemos os pedidos que cada uma tinha direito, no caso de revogação da preventiva e relaxamento, e as que não tinham direito, nós pelo menos demos ciência da situação de cada uma”.
Isadora pontua que no Crato há sim alguns trabalhos de ressocialização. Ela informa que as mulheres participam dos trabalhos na cozinha da cadeia, elas têm trabalhos de corte e costura também. Além disso, após a realização do mutirão carcerário, foi realizada uma campanha de arrecadação de livros para a construção de uma biblioteca que, de acordo com ela contem muitos clássicos da literatura como Machado de Assis, Lima Barreto, Clarice Lispector, entre outros. Elas também estudam. “Longe de querer romantizar a situação carcerária dessas mulheres sabe, mas pelo menos alguma coisa se tem né? É claro que muito longe do ideal. Tem que ser sincera, mas algum tratamento é dado à essas mulheres, assim, no sentido de empatia mesmo de ter responsabilidade social”.
Ceará em números
Entramos em contato com a Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará (SAP) para saber como está a questão da lotação dos presídios femininos no estado. A assessoria de comunicação informou que o Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF), que possuí 1.092 vagas, atualmente conta com 852 internas. Já a Cadeia Pública do Crato, tem 109 internas, com um total de 141 vagas existentes, por fim, a Cadeia Pública de Sobral, tem 162 vagas e possui 55 internas.
A assessoria de comunicação também informou que a SAP recebe, com regularidade, vistorias e fiscalização do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades de controle social.
Edição: Monyse Ravena