Milhões de crianças e jovens em todo o mundo estão sendo afetados drasticamente com a suspensão das aulas. Os impactos sobre os estudantes não são apenas no aprendizado, mas também emocionais, psicológicos e, em algumas situações, até na segurança alimentar.
A escola continua sendo um dos principais espaços de socialização e aprendizado na sociedade. Afirmação aparentemente óbvia, mas que tem sido questionada nas últimas duas décadas, devido ao avanço, cada vez mais acelerado, da influência dos meios de comunicação de massa e da internet na formação intelectual e comportamental das novas gerações. Mesmo sem desconsiderar tal influência, as consequências da pandemia acabaram por dirimir os discursos e análises que apontam para perda da centralidade e importância da escola e de seus profissionais.
Nesse sentido, as discussões e proposições acerca do papel e desafios das instituições escolares no atual contexto de pandemia devem (ou deveriam) ser feitas de forma séria e responsável, observando as múltiplas variáveis e contradições que permeiam o fenômeno educacional.
No último dia 19, o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), anunciou uma nova etapa da reabertura das escolas no estado. Com essa decisão, a partir do dia 1° de outubro fica autorizada a abertura de escolas públicas e privadas da macrorregião de Saúde de Fortaleza (que compreende 44 municípios). Pais e alunos poderão optar entre retornar às atividades presenciais ou manter o ensino remoto.
As instituições de ensino poderão reabrir com até 35% da sua capacidade, nas seguintes séries e modalidades: a) 1º e 2º anos do ensino fundamental; b) 9º ano do ensino fundamental; c) 3º ano do ensino médio e educação profissionalizante; d) Educação de jovens e adultos (EJA). Para as instituições de Ensino Infantil, foi autorizada a ampliação de 35% para 50% do seu limite.
As principais entidades que representam os profissionais da rede básica de educação no estado, APEOC e SINDIUTE, já se posicionaram firmemente contra tal medida, alegando a falta de condições sanitárias e de infraestrutura nas escolas, além dos evidentes riscos à saúde de estudantes, professores e funcionários. Exigem, portanto, o recuo do governo do estado, com a manutenção das aulas remotas e melhores garantias para a continuidade das atividades à distância.
Subjacente a esta decisão, justificada pelos índices positivos do combate ao coronavírus por parte do governo cearense, se comparados à realidade de outros estados, dois questionamentos me parecem pertinentes: A pandemia na macrorregião de Fortaleza já está num nível de controle que possibilita a tomada de uma medida dessas proporções? Essa decisão tem relação com a pressão exercida pelo Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará (Sinepe-CE)?
O governo estadual elaborou e divulgou um protocolo, bastante completo por sinal, para orientar o retorno presencial das aulas. Destaco alguns pontos, consequências e limites ensejados pela leitura do documento: 1. Para o cumprimento das medidas indicadas, por parte das escolas públicas, seriam necessários investimentos em infraestrutura, compra de equipamentos e contratação de funcionários que não estão garantidos pelo governo; 2. Os atuais profissionais das escolas terão uma intensa sobrecarga de trabalho, pelas novas atribuições, cuidados e preocupações que serão responsabilizados; 3. Por mais que determinada instituição (pública ou privada) implemente o protocolo em sua integralidade, é bom lembrarmos que a escola não é uma ilha, e que os trabalhadores e estudantes, antes e depois das aulas, inevitavelmente, terão contatos e se submeterão à aglomerações, sobretudo nos transportes públicos, que escapam da responsabilidade da mesma.
Vejamos, a reabertura das escolas em boa parte da Europa se deu após uma queda drástica dos casos de contaminação e mortes nos respectivos países. Situação que ainda não tivemos (e que talvez não tenhamos, se depender da política genocida do governo federal). Numa rápida pesquisa na internet, se observa a diferença abissal entre as escolas públicas europeias e brasileiras, seja pelo número de alunos, condições de trabalho dos docentes ou infraestrutura. Mesmo assim, em vários destes países, há um verdadeiro “abre e fecha” das instituições de ensino, devido aos casos frequentes de novas contaminações.
Se quisermos citar os casos da China ou da Coreia do Sul, os rígidos e minuciosos protocolos de segurança sanitária parecem até ficção científica se comparados a nossa realidade. Além de discrepâncias culturais entre asiáticos e nós brasileiros e, sobretudo, cearenses, identificadas nas relações sociais, no que tange ao contato físico, toque e aproximação.
Experiências de reabertura das escolas em outros estados brasileiros servem de alerta para o que pode acontecer no Ceará. Um dos casos mais emblemáticos, sem sombra de dúvidas, é o da cidade de Manaus. Na capital do Amazonas, mais de 100 mil alunos do Ensino Médio retornaram às aulas presenciais no dia 10 de agosto. Após duas semanas, 1.064 professores foram testados. O resultado? 342 deram positivo para o novo coronavírus.
Infelizmente, a pandemia tem acentuado as desigualdades educacionais existentes historicamente no país e no nosso estado. O acesso à internet e equipamentos eletrônicos de qualidade, um ambiente adequado em casa para estudar e o apoio e acompanhamento familiar não são os mesmos entre alunos de escolas públicas e privadas, mesmo com algumas ações pontuais que os governos estadual e municipais têm lançado nos últimos meses. E esse “dualismo escolar” tende a ser aprofundado com os modelos de retorno das aulas presenciais que tem sido adotados no Brasil e este proposto no Ceará. O que pretendo abordar num outro artigo.
Para se ter uma ideia, dos 386.025 estudantes, dos 2º, 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, 3ª série do Ensino Médio e EJA Ensino Médio, de instituições das redes municipal e estadual, conforme dados do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará de 2018 (SPAECE), 65,8% dos estudantes não tinham nenhum acesso a computador em casa, enquanto 29,5% dispunham de um.
Por fim, ouso elencar algumas estratégias que avalio serem mais urgentes e necessárias no momento, em vez de um retorno presencial das atividades escolares nas atuais circunstâncias:
1. A elaboração e acompanhamento de protocolos para possíveis retornos presenciais das aulas devem ter a participação direta dos pais, sindicatos dos profissionais da educação, especialistas sanitários independentes e entidades científicas;
2. É necessária a construção de um plano pedagógico que amenize os impactos da pandemia na aprendizagem e na vida das crianças e jovens, a partir do diálogo entre secretarias estadual e municipais de educação, universidades e pesquisadores;
3. Unificar os anos letivos de 2020 e 2021 (talvez 2022) num mesmo ciclo de aprendizagem, sem pressões das avaliações internas e externas, como tem indicado Luiz Carlos de Freitas (UNICAMP);
4. Apoiar e desenvolver, respeitando os cuidados sanitários, ações que fortaleçam o vínculo entre as escolas e estudantes, para combater a evasão escolar;
5. Manter, aprimorar e ampliar projetos que assegurem o acesso à alimentação de qualidade para estudantes de baixa renda, a exemplo do “vale-alimentação”, enquanto durar a pandemia;
6. Construir uma ampla política de inclusão digital para crianças e jovens das periferias das cidades e das zonas rurais do estado;
7. Formular e assegurar uma política de acompanhamento psicossocial aos alunos e trabalhadores das escolas;
8. Respeito e diálogo permanente entre os poderes públicos e entidades representativas dos profissionais da educação.
A pandemia do novo coronavírus tem uma dimensão pedagógica cruel, como nos tem alertado o professor português, Boaventura de Sousa Santos. Em que sentido? Primeiro, expõe e/ou aprofunda relações de desigualdade e opressão. Segundo, desnuda os projetos e receituários neoliberais e colonialistas, impotentes diante dos desafios sociais, políticos, ambientais, econômicos e culturais na contemporaneidade. Terceiro, lança luz sobre experiências concretas e autênticas de solidariedade e resistência que podem alçar novos patamares em curto e longo prazo.
Ou seja, os sujeitos, individuais ou coletivos, podem aprender e ensinar algo em meio a esta tragédia. Alguns pretendem reproduzir o “velho normal”, outros comprometem-se em construir um “novo normal”. A primeira opção já conhecemos e sabemos no que vai dá. A segunda ainda carece de conteúdo e experiência. Que tal inserirmos as escolas nesse debate?
*Sociólogo, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e militante da Consulta Popular
Edição: Francisco Barbosa