O Brasil de Fato Ceará entrevistou o educador, gestor social e escritor Joelmir Pinho sobre o legado de Paulo Freire. Associado fundador e atual diretor geral da Escola de Políticas Públicas e Cidadania Ativa (Epuca), Joelmir é um dos organizadores da Semana Freiriana do Cariri, para ele é necessário “gerar desconforto de forma amorosa”. Confira trechos da entrevista abaixo.
O aprendente
Essa ideia de aprendente é algo que para mim tem muito significado, não é apenas uma retórica ou um recurso poético, isso tem muito a ver com o Paulo Freire. A consciência de que somos seres em construção e, por tanto, aprendemos em todas relações, em todos os contatos e em todos encontros e até nos desencontros que a vida nos oferece, é algo que me marca muito e me caracteriza como sujeito, educador e militante social. Eu venho de origens muito ligadas ao campo, não por acaso, mesmo não estando mais na atividade campesina, no final dos anos 1980 eu ingresso no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e passei três anos de minha vida. Antes de qualquer universidade ou formação acadêmica, minha primeira e grande escola foi a militância no MST, nele eu aprendi sobre afeto, solidariedade, luta, engajamento, sobre tudo aquilo que Paulo Freire nos dizia que era essencial.
Neste percurso todo, Paulo Freire acaba sendo uma figura muito presente, mesmo hoje que eu tenho uma atuação depois de cursar administração pública na Universidade Federal do Cariri, depois de ser professor desta mesma Universidade, depois de trabalhar em alguns organismos internacionais como consultor eu continuo tendo em mente, talvez mais ainda, a convicção de que não há como fazer tudo isso se eu me afastar desta relação com as comunidades com as pessoas, aquilo que Paulo Freire chamava, “a leitura do mundo antecede a leitura das palavras”.
Paulo Freire por Joelmir
Minha relação com Paulo Freire é muito mais uma relação com a figura humana do que propriamente com o educador, tem uma coisa que acho importante refletirmos sobre Paulo Freire, ele não era pedagogo, ele era por formação advogado, portanto ele é o que a gente vai chamar na linguagem mais técnica de pedagogista, ele é um estudioso da pedagogia, dos processos de ensino e aprendizagem. O que me conecta com Paulo Freire são quatro questões, a própria obra, porque há de fato uma obra, os escritos dele são muito intensos além de uma quantidade muito grande, o legado de Freire na literatura é muito grande, há muita coisa para se ler dele.
Uma outra dimensão é a própria vida de Freire, quando ele se muda de Recife para Jaboatão dos Guararapes devido à crise de 1929, ele tem contato com crianças e adultos que ele até então ele não conhecia, não faziam parte do seu universo, e esta curiosidade para saber mais das pessoas é outra coisa fundamental e me encanta muito. É extraordinário o quanto Freire se importava em saber com quem ele estava conversando, não para rotular, nem para julgar mas para tentar se colocar no lugar do outro, portanto empatia era um elemento muito presente em Paulo Freire. A outra coisa que me encanta em Freire é a coerência, ele mesmo dizia, tão importante quanto os conteúdos que eu ensino é a coerência entre o que eu digo e o que eu faço, e Freire viveu de forma muito coerente.
A quarta dimensão que eu acho fundamental era a sua capacidade de amar, em tempos de tanto ódio, intolerância e desamor. Ele conseguia ao mesmo tempo ser muito firme na indignação, sem se afastar da perspectiva da amorosidade. Esses quatro elementos são muito fortes quando eu olho para Paulo Freire, não estou falando somente dele enquanto educador, que já é muita coisa, mas falando de um Paulo Freire que viveu intensamente sua humanidade.
Legado de Paulo Freire na educação
Há uma acusação que nos fazem que eu gostaria muito que fosse verdadeira, que é a de que nós, professores, usamos demais o Paulo Freire na sala de aula, infelizmente não usamos, se a gente tivesse feito esse exercício de ter Freire presente na sala de aula, nós não estaríamos no momento em que a gente está vivendo, inclusive sob ameaça escancarada de um autogolpe paramilitar. Uma questão fundamental para ele, e acho que foi sua maior contribuição na educação, foi nos alertar para o fato de que não há educação neutra, não há fazer pedagógico neutro. Quando eu me coloco no papel de educador, professor, na sala de aula ou qualquer lugar de ensino e aprendizagem, eu me coloco a serviço de alguma compreensão de mundo, a suposta neutralidade é se colocar a serviço da perpetuação desse velho mundo.
Nós temos um modelo de educação do século XIX, onde o diálogo é escasso, a começar pela própria distribuição física da sala de aula, aquilo que Paulo Freire ia chamar de educação bancária em dois sentidos. Bancária por que eram bancos enfileirados um atrás do outro, sem a possibilidade do encontro e do diálogo e era bancária por que a cabeça, e mais do que a cabeça o coração dos estudantes, eram encarados como bancos em nós íamos depositar nosso conhecimento, alguém que professa sua verdade, Paulo questionava tudo isso. Ele chama a atenção para duas questões, a primeira é que a compreensão fundamental que, citando Freire, “não há saber mais, nem saber menos, há saberes diferentes”, então reconhecer o saber do outro tem uma dimensão pedagógica e afetuosa de um tamanho enorme, se a gente tivesse levado isso para sala de aula, nós teríamos outra compreensão de mundo e das suas relações.
A outra questão é o que ele vai chamar de problematização dos processos de aprendizagem. Eu vi em um assentamento da reforma agrária no Maranhão, o povo tinha acabado de passar por um ciclo de cultura, que era como Paulo passou a chamar a experiência na sala de aula, tinha escrito no oitão da casa com carvão, por um dos recém alfabetizados uma frase que não era dele, era do Josué de Castro, mas que ele tinha escrito a partir do significado dela a frase era, “O problema do Nordeste não é a seca, é a cerca”. Eu fui procurar quem tinha usado o carvão para escrever essa frase e encontrei seu José, eu perguntei para ele o que aquela frase significava e ele me deu uma aula de meia hora do que aquilo significava para ele. Aquele processo de alfabetização não foi apenas um letramento, foi um processo crítico-reflexivo da realidade, das relações de poder, por que ele não tinha acesso à terra, por que ele precisou ocupar para ter a terra, teve que enfrentar violência policial, a aprendizagem da escrita de uma palavra permitiu que José aprendesse uma questão que era central para a vida dele, e isso é Paulo Freire.
A Semana Freiriana do Cariri
A Semana Freiriana é uma iniciativa da Educa que é uma organização da sociedade civil fundada em 2010, éramos à época 16 pessoas de diversas áreas e que tinham uma inquietação, a ideia que a gente não estava fazendo o suficiente para melhorar o mundo, nós acreditávamos que outro mundo é possível e mais do que isso, outro mundo é necessário e ele é urgente. Em 2011 nós tivemos os 90 anos de nascimento de Paulo Freire, a escola nasce e já começamos a conversar sobre o que iríamos fazer para celebrar os 90 anos de Freire, assim nasce a ideia da Semana Freiriana do Cariri. Eu confesso que a gente não tinha a menor ideia do tamanho que isso ia ganhar, em uma entrevista feita de supetão na primeira edição da semana a jornalista me perguntou qual o principal objetivo da semana, e me vem de súbito, “gerar desconforto de forma amorosa”, e é isso que nós fazemos desde de 2011.
Na primeira edição nós tivemos a presença de Fátima, filha de Freire, o formato é, basicamente, uma roda de conversa com várias pessoas e outras atividades, geralmente ligadas à cultura e educação popular, tivemos uma experiência com atividades acadêmicas, mas vimos que não era o que a semana se propunha. Em 2013 nós percebemos que a gene não tinha mais fôlego para fazer anualmente, e então passa a ser bianual, uma coisa que é muito característica da semana é que ela é um evento de educação no seu sentido mais alargado possível. Em 2021 nós teremos a sétima edição celebrando os 100 anos do nascimento de Paulo Freire, já começamos a matutar, ainda não temos o desenho pronto, mas sabemos que um dos principais objetivos será reunir pessoas que conviveram com Freire, esse será um desafio. A gente quer também para a próxima semana, ainda estamos fechando no grupo, trazer para a cena a Educação Popular de forma muito intensa.
Edição: Monyse Ravena