No governo fascista, as bibliotecas sequer servem como cenário. Do conforto de seu lar, nas suas aparições diárias, o Ministro da Economia ostenta uma enorme estante vazia, de onde planeja obsessivamente taxar os livros. Apresentado pelo ministro-banqueiro no conjunto de medidas da chamada Reforma Tributária, a taxação dos livros confirma, mais uma vez, sua vocação assumida desde a campanha em 2018, qual seja, a de manter os privilégios de uma elite sórdida, avessa às iniciativas de transformação social, por mínimas que sejam. A desfaçatez é tamanha a ponto de a pobreza do povo servir de justificativa, recorrendo à chantagem: livros ou programas sociais.
Mais do que impor uma taxa sobre os livros, o que está em jogo é uma tentativa de fortalecer o obscurantismo cultivado por um governo que despreza os livros e quer, a todo custo, privar os brasileiros à leitura, direito tão distante do povo, em grande medida pela ausência de políticas públicas de incentivo ao livro e a leitura. Os livros didáticos, diz o capitão-presidente, têm “muita coisa escrita”. Este é o golpe de um governo contra o livro e em favor das armas, como escreve a estudiosa Marisa Midori.
Neste cenário turvo e desafiador, cabe-nos insistir com esperança, nos atendo às experiências em defesa dos livros, como observado na recente Campanha Literária Nacional Cultura e Solidariedade lançada pela Editora Expressão Popular, que reduz pela metade do preço seus títulos, espalhados com os livreiros-militantes em todo o país. Como inspiração nesta batalha, evocamos a memória de Antonio Cândido, nosso Mestre, em sua permanente defesa do “direito à literatura” enquanto direito humano, razão que nos encoraja a seguirmos vigilantes, reforçando nosso amor aos livros, à leitura e a permanente luta antifascista.
Também neste ano de 2020, em Rondônia, em fevereiro, a Secretaria Estadual da Educação listou 43 livros que deveriam ser recolhidos das escolas. No index estavam Machado de Assis, Mário de Andrade, Euclides da Cunha, clássicos do pensamento brasileiro censurados por “conteúdo inadequado”. A lista contava, ainda, com o nome de Franz Kafka, escritor que o ministro-paspalhão da Educação, na altura Abraham Weintraub, meses antes, entendia por “kafta”, ao tempo que se aplicava integralmente em detratar Paulo Freire, um dos mais respeitados e traduzidos pensadores brasileiros.
Na história do Brasil, em retrospecto, não faltam episódios assim. A perseguição ao romance “Lapa”, de Luís Martins, ou a livros de Jorge Amado, a prisão dos escritores Graciliano Ramos e Mário Lago, são alguns exemplos. Agrippino Grieco, crítico de estirpe conservadora, registrou: “Encarregaram um policial de apreender os livros ‘vermelhos’ da biblioteca de um comunista, e ele começou arrecadando as obras camilianas da [editora] Parceria Antônio Maria Pereira, todas elas apresentadas em encadernação cor de sangue”. Na ditadura de 1964, “Quarto de despejo”, livro de Carolina Maria de Jesus, foi proibido de circular, dado o perigo que o diário de uma favelada representava aos poderosos. Em 2013, Ivan Pinheiro Machado denunciava a perseguição aos livros, dado a investida policial e apreensão de um título da L&PM na casa de um jovem, na cidade de Itaboraí. No ano seguinte, um inquérito da polícia carioca contra uma professora citava como um dos suspeitos Bakunin, filósofo russo morto há mais de cem anos, e a polícia militar de São Paulo apreendia, da mochila de um estudante, a biografia de Marighella.
Hoje, quando nos deparamos com a feroz investida contra a Fundação Casa de Rui Barbosa, a Cinemateca Brasileira e a Fundação Palmares, o que se apresenta é um projeto articulado de destruição da cultura. A descoberta do dossiê sobre centenas de funcionários públicos antifascistas, ligados a luta pelos Direitos Humanos, produzido por dentro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, integra uma das faces mais obscuras deste projeto. Não é outra a atividade do atual governo senão passar o trator, pilhar e atear fogo. Fogo que faz desaparecer, criminosamente, as florestas; e ameaça e mata nossos povos originários. O passo segue ligeiro, “passando a boiada”, como manda o Ministro do desmatamento.
*Lucas Assis é doutorando em História Social pela UFC e integrante do Plebeu Gabinete de Leitura.
*Romário Bastos é doutorando em História Social pela UFC, professor da rede pública do Ceará e integrante do Plebeu Gabinete de Leitura.
Edição: Monyse Ravena