Leandro Vieira Cavalcante, geógrafo, doutor em Geografia e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), apresenta e denuncia a ação do agronegócio no Ceará no que refere à produção de algodão transgênico. O pesquisador evidencia o avanço e os males dessa produção, principalmente na Chapada do Apodi, que, de acordo com Leandro, é o “filé do agronegócio” no Ceará. Ainda de acordo com Leandro, "com a pandemia, em nenhum momento o plantio e a colheita foram paralisados, muito pelo contrário". Em referência ao papel do Governo do Estado do Ceará, o professor afirma, "tudo isso ocorre, é importante ressaltar, com ampla participação do Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho, que coordena o Programa do Algodão e tem incentivado os produtores e as empresas a aderirem às suas diretrizes, o que inclui usar semente transgênica".
Em entrevista ao Brasil de Fato, Leandro falou mais sobre a sua pesquisa e sobre como está a situação do agronegócio do algodão, o uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, segundo ele, "enquanto na Europa, por exemplo, avança uma movimento civil e jurídico para proibir o uso do Glifosato, aqui no Ceará seu uso é incentivado pelo próprio Governo do Estado, além de uma série de outros produtos tóxicos. É um completo absurdo." Outros temas são a territorialização das empresas e como tudo isso pode afetar os moradores das localidades que estão recebendo esse tipo de investimento no Ceará e, principalmente, na Chapada do Apodi. Confira.
BdF: 1 - Qual o interesse de investir na produção de algodão no Ceará?
Leandro Vieira Cavalcante: Dentre os vários interessados no agronegócio do algodão transgênico no Ceará, há um que chama particularmente a atenção. Trata-se da Santana Textiles, uma das maiores empresas têxteis do país que desde 2019 investe em duas frentes de expansão, uma centrada na aquisição de algodão de pequenos, médios e grandes produtores, e outra no plantio de algodão em fazendas próprias. A Santana Textiles tem firmado parcerias com os produtores de algodão, os quais passam a ser fornecedores exclusivos para a empresa, que se responsabiliza pela colheita e pelo transporte. Isso vem acontecendo, sobretudo, com os produtores do Cariri e da Chapada do Apodi. Pode-se afirmar que todos os produtores dessas duas regiões comercializam algodão transgênico para essa grande firma, que acaba, de certo modo, monopolizando a produção algodoeira no Ceará. Já os plantios da firma vêm ocorrendo também na região da Chapada do Apodi, nos municípios de Tabuleiro do Norte e Limoeiro do Norte, onde especula-se que a Santana Textiles já possua 24 mil hectares, sejam de fazendas próprias ou arrendadas. Isso abre toda uma outra problemática, que se refere à expansão do latifúndio, da monocultura, o uso de transgênicos e agrotóxicos e da pressão ambiental nessa região, já bastante castigada pelo agronegócio da fruticultura.
2 – Por que a Chapada do Apodi foi escolhida como “um novo polo” de produção do algodão aqui no Ceará? Qual o tamanho da área que será utilizada para essa produção?
Leandro: A Chapada do Apodi é o “filé do agronegócio” no Ceará, especialmente porque: apresenta solos férteis e passíveis de serem irrigados; possui boa infraestrutura logística, com estradas voltadas para o escoamento da produção; apresenta boa disponibilidade hídrica, com canais que transportam água do Açude Castanhão e do Rio Jaguaribe para irrigar as plantações; já há instalada uma infraestrutura hídrica voltada para a irrigação, como pivôs centrais e canais, além de contar com um perímetro irrigado público federal, o Jaguaribe-Apodi, construído no final dos anos 1980 e que abriga grandes produtores de frutas e grãos; ainda apresenta terras ociosas e de baixo custo; tem à disposição uma mão de obra especializada e abundante; apresenta um clima político e normativo propício à expansão do agronegócio, com articulação e intervenção do Estado de maneira direta; possui um histórico, iniciado nos anos 1990, voltado para a expansão de atividades do agronegócio, com grandes empresas dos ramos da fruticultura, grãos e pecuária leiteira já instaladas na região, em que se inclui multinacionais.
Há também toda uma expectativa para a Chapada do Apodi receber as águas advindas com a Transposição do São Francisco, garantindo o aporte hídrico para irrigar os cultivos, como será o caso do algodão transgênico. Com a garantia de compra do algodão pela Santana Textiles e com a garantia de água por parte do Governo do Estado, isso anima os empresários a investir no agronegócio do algodão transgênico nessa e em outras regiões do Ceará.
Só na Chapada do Apodi, especula-se que a Santana Textiles já controla cerca de 24 mil hectares voltados para o plantio de algodão transgênico. É uma quantidade alarmante, assustadora, que acende o sinal vermelho da expansão do latifúndio e da concentração fundiária nessa região. Para se ter uma ideia, nossa pesquisa de doutorado demonstrou que apenas na Chapada do Apodi a área ocupada pelas grandes firmas do agronegócio da fruticultura não chega nem aos 10 mil hectares, incluindo as áreas das fazendas de Del Monte e Agrícola Famosa, que ocupam as maiores áreas. Agora, apenas uma única empresa chegará aos 24 mil hectares. É algo jamais visto na Chapada do Apodi. Isso demonstra que a inserção do agronegócio do algodão transgênico na região levará a uma expansão do latifúndio e da concentração fundiária a patamares nunca antes observados na Chapada do Apodi, um território marcado historicamente por intensos conflitos por terra e por água.
3 – O Programa do Algodão e a produção já tiveram início, ou a pandemia adiou esse processo?
Leandro: O Programa do Algodão teve início em 2017, e desde então observa-se a articulação político-empresarial no sentido de alavancar o cultivo do algodão transgênico no Ceará. A área plantada cresce a cada ano, com mais municípios produtores, concentrados nas regiões do Cariri, Sertão Central, Centro-Sul e Vale do Jaguaribe. Em 2020 a área plantada já passa dos três mil hectares.
Com a pandemia, em nenhum momento o plantio e a colheita foram paralisados, muito pelo contrário. No Cariri, apenas entre maio e junho, a Santana Textiles havia colhido o algodão plantado em aproximadamente 1.600 hectares, de inúmeros produtores, de grandes a pequenos. Além disso, está sendo durante a pandeia que a Santana Textiles resolveu iniciar o preparo do solo para plantar algodão transgênico em suas fazendas da Chapada do Apodi, causando grande preocupação nas comunidades e entre os trabalhadores, que diariamente estão nas fazendas desmatando, adubando o solo, levantando cerca, construindo as instalações. Há relatos de que a empresa não parou um dia sequer as atividades em suas fazendas, mesmo no pico da pandemia.
4 – Na sua pesquisa percebemos que essa produção está muito voltada para o agronegócio. Como isso afeta os agricultores familiares da Chapada do Apodi?
Leandro: São inúmeros os agravantes relacionados com a expansão do agronegócio do algodão transgênico em todo o Ceará, e não apenas na Chapada do Apodi. Todavia, nessa região o cenário se apresenta ainda pior tendo em vista que concentra as atividades produtivas da Santana Textiles. Os relatos que chegam das comunidades localizadas nos arredores das fazendas compradas pela firma dão conta da preocupação em torno do uso dos transgênicos e de todo um pacote de venenos (inseticidas, herbicidas e fungicidas), além da pressão fundiária e hídrica que vem gerando, somado aos agravos ambientais, como o desmatamento. É um agronegócio transgênico, carregado de veneno, vestido de latifúndio e monocultura, que demandará trabalho degradante e que sugará ainda mais a pouca água que resta nos aquíferos da região. Nos encontramos diante de um novo e potencial mal que se anuncia, que castigará homens e mulheres, terra e água, natureza e sociedade, deixando profundas marcas que dificilmente poderão ser apagadas com o tempo.
De diferentes formas, chegam até nós os relatos das comunidades, cujo sentimento maior é de medo e incerteza diante da chegada da firma a partir da pressão exercida sobre as terras, do evidente desmatamento, do fluxo de caminhões e trabalhadores e do eminente uso de venenos, o que inclui agrotóxicos e fertilizantes. A pressão sobre as terras e as águas das comunidades, o cercamento e fechamento das estradas, o desmatamento e a perfuração de poços, a circulação de pessoas de fora, o perigo dos venenos e dos transgênicos, o barulho das máquinas e a poeira dos caminhões, entre outros, são problemáticas concretas relatadas pelas comunidades. O estrago já foi feito naquele território, e com perspectivas ainda mais cruéis frente ao direito de uma vida digna no campo, ameaçando diretamente o acesso dos camponeses e das camponesas à terra e à água, o direto ao ar puro, à mata nativa de pé, ao alimento sem veneno e à liberdade de ir e vir.
Tudo isso ocorre, é importante ressaltar, com ampla participação do Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho, que coordena o Programa do Algodão e tem incentivado os produtores e as empresas a aderirem às suas diretrizes, o que inclui usar semente transgênica (desenvolvida por Embrapa e Monsanto) e todo um pacote de venenos, além de assegurar a venda do algodão para a Santana Textiles. O Governo do Estado do Ceará é o principal responsável pelas ameaças e pelos impactos já observados nas comunidades da Chapada do Apodi. Há uma conjunção de forças políticas por detrás desse programa, em ampla parceria com a iniciativa privada.
5 – Em algum momento foi explicado para esses agricultores sobre os riscos do uso dos agrotóxicos que a Embrapa Algodão fornece como ferramenta de incentivo para essa produção?
Leandro: Só uma observação: a Embrapa não fornece nem as sementes transgênicas e nem os agrotóxicos. Ela apenas os indica, é diferente de fornecer. O Estado também não fornece esses produtos, mas incentiva o seu uso. Os produtores têm que comprar as sementes e os agrotóxicos. O que acontece é que uma das variedades de sementes transgênicas mais difundidas é justamente uma variedade desenvolvida pela própria Embrapa Algodão, a BRS 433 B2RF.
A desinformação é uma estratégia já antiga utilizada pelo agronegócio, que não tem qualquer preocupação com o bem estar da população, exceto quando é cobrado por seus consumidores. Já sobre a atuação da Embrapa, não é possível afirmar se houve ou não uma ampla estratégia de comunicação dos riscos aos quais os produtores e trabalhadores estarão expostos com o uso dos agrotóxicos. É necessária a realização de uma pesquisa in loco para averiguar a questão do uso dos agrotóxicos. O que se sabe é que eles estão sendo amplamente utilizados, conforme recomendado pela Embrapa e pelo Governo do Estado do Ceará.
6 – Houve algum tipo de objeção da parte dos agricultores em usar esses agrotóxicos?
Leandro: Igualmente a questão anterior, é preciso uma pesquisa de campo para averiguar e avaliar a questão do uso dos agrotóxicos entre os produtores. Mas sabe-se que todos os novos produtores de algodão do Ceará estão utilizando agrotóxicos e sementes transgênicas. Até mesmo para se obter financiamentos dos bancos públicos, é exigido dos produtores a utilização do pacote (transgênicos + agrotóxicos) recomendado pela Embrapa.
7 – Qual o agrotóxico mais nocivo à saúde que está liberado para essa produção? Ele é liberado em outros países, ou só aqui no Brasil?
Leandro: Dentre os agrotóxicos utilizados na produção de algodão transgênico no Ceará, chama atenção, sobretudo, o Malathion (inseticida), o Crucial (herbicida) e o Opera (fungicida). Para o controle do bicudo, um inseto que ataca os cultivos de algodão, a Embrapa recomenda o uso particularmente do Malathion, um inseticida produzido pela multinacional Bayer - ressalta-se que o Malathion é também um dos inseticidas usados no combate do mosquito Aedes aegypti. Já o Crucial é um herbicida bastante utilizado no cultivo de algodão, que contém Glifosato na sua composição, um veneno comprovadamente cancerígeno, produzido pela Nufarm. Enquanto o Opera, produzido pela multinacional Basf, vem sendo utilizado para controle da ramulária, um fungo que ataca o algodão. Enquanto na Europa, por exemplo, avança uma movimento civil e jurídico para proibir o uso do Glifosato, aqui no Ceará seu uso é incentivado pelo próprio Governo do Estado, além de uma série de outros produtos tóxicos. É um completo absurdo.
8 – Qual a expectativa, em números, da produção com a chegada do Programa do Algodão?
Leandro: O Estado, os empresários e os produtores estão animados com as perspectivas para o setor, diante da garantia de compra pela Santana Textiles, do apoio dado pelo Governo do Estado do Ceará e dos incentivos financeiros disponibilizados pelos bancos públicos, como o Banco do Nordeste e o Banco do Brasil. Com isso, expande-se a quantidade de empreendimentos voltados para o agronegócio do algodão transgênico em território cearense, com cada vez mais produtores aderindo ao Programa do Algodão. No Cariri é crescente a quantidade de pequenos, médios e grandes produtores cultivando o produto, e o Estado prevê que a área plantada chegue aos cinco mil hectares em dois anos. Já na Chapada do Apodi, além da Santana Textiles, com seus 24 mil hectares, demais empresas, inclusive da fruticultura, voltam-se também para a produção de algodão, como é o caso de Agrícola Famosa e de produtores do perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi. O Estado estima dois mil hectares cultivados com algodão transgênico apenas no perímetro irrigado nos próximos dois anos, além de áreas de Santana Textiles, Agrícola Famosa e demais empresas, cuja área total pode passar dos 30 mil hectares. Há de se considerar ainda as áreas cultivadas em outras regiões, como no Sertão Central e no Centro-Sul. Muito em breve assistiremos à consolidação do agronegócio do algodão transgênico no Ceará, com algumas centenas de hectares.
Edição: Monyse Ravena