A rápida disseminação do novo coronavírus, agente etiológico da covid-19, pelo planeta obriga governos a implementarem uma série de intervenções para minimizar a taxa de contágio de forma a resguardar os respectivos sistemas de saúde. Caso a busca por atendimento ultrapasse a capacidade hospitalar instalada, como salas de emergências, medicamentos e leitos, esses sistemas podem enfrentar um colapso.
Desenvolvimento de testes de diagnóstico mais rápidos e eficientes, medidas de quarentena para casos confirmados e suspeitos, melhoramentos na gestão clínica e de protocolos de atendimento, isolamento social e outras ações são algumas das medidas implementadas. A urgência e intensidade dessas medidas devem-se à alta transmissibilidade, pois o contágio ocorre pelas vias respiratórias, por gotículas no ar e secreções aéreas, além de poder ser transmitido por pessoas assintomáticas, o que dificulta ainda mais a detecção dos infectados. Ainda não há medicação ou vacinas contra a doença.
No momento, o Brasil é o segundo país no ranking de infectados pela covid-19, disputando com os Estados Unidos a liderança no número de mortes diárias causadas pelo vírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou que a América Latina é o novo epicentro global, sendo o Brasil o país que apresenta a maior taxa de contágio.
Debates em torno da necessidade de uma imunidade de rebanho ao novo coronavírus tomam lugar na comunidade científica e nas decisões políticas. “Imunidade de rebanho” significa que parte considerável da população já possui anticorpos contra um determinado patógeno, fazendo com que este pare de circular e não seja mais uma ameaça à saúde pública. Em relação a outros surtos de doenças infecciosas, essa imunidade de rebanho foi alcançada através de vacinas, como, por exemplo, a vacina contra a varíola.
Diferentes tipos de vacinas
Enquanto não atingimos a porcentagem necessária de pessoas com anticorpos contra o Covid-19 para estabelecer uma imunidade de rebanho, há uma corrida por novos medicamentos e o desenvolvimento de uma possível vacina.
Mas a produção de uma vacina não é tarefa simples. É um processo que requer grandes investimentos, muita pesquisa e práticas científicas que requerem tempo. Para se ter uma ideia, a vacina contra o sarampo levou 10 anos para ficar pronta, enquanto a vacina contra o Ebola necessitou de mais de 20 anos de pesquisas. O desenvolvimento mais rápido de uma vacina já registrado na história foi o da vacina contra a caxumba, que levou 4 anos. Ainda não dispomos de vacinas para várias doenças infecciosas conhecidas e que causam muitas mortes anualmente, como, por exemplo, AIDS, malária, sífilis ou dengue.
Cada vacina é produzida para um organismo patogênico específico e funciona estimulando a produção de anticorpos que protegerão nosso corpo contra a invasão desses organismos. Elas são um preparado biológico produzido com os próprios patógenos que se deseja combater e que serão injetados em forma de pequenas doses para que o corpo humano reconheça a forma do vírus, bactéria ou protozoário invasor e produza os anticorpos específicos, como um esquema “chave e fechadura”.
Encontrar esse equilíbrio entre a quantidade da dose do patógeno necessária para o estímulo da produção de anticorpos no corpo humano sem causar a doença é um desafio. As vacinas são classificadas em três grupos, dependendo da técnica utilizada na sua produção. As vacinas vivas, ou celulares, utilizam o agente patogênico na sua integridade, mutações genéticas ou microrganismos inofensivos semelhantes à constituição do agente original que possam desencadear a resposta imunológica desejada. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aplica esse método na produção da vacina contra a tuberculose, utilizando uma bactéria obtida de bovinos cujo enfraquecimento gera o bacilo Calmette-Guérin, daí o nome da vacina BCG. Essa técnica vem dos primórdios das pesquisas com vacinas e novos estudos visam torná-la mais eficaz e segura.
As vacinas do segundo grupo geralmente utilizam o agente infeccioso inativado. Utiliza-se o vírus já morto ou fragmentos do vírus capazes de provocar uma resposta imunológica. Aqui, o segredo é encontrar a parte específica da capa ou envelope proteico do vírus que se encaixa nos receptores do corpo humano. O Instituto Butantan, através de tecnologia transferida do laboratório francês Sanofi, utiliza essa técnica na produção da vacina trivalente contra a Influenza. Milhões de ovos de galinha são fecundados e inoculados para o cultivo das cepas dos vírus H1N1, H3N2 e B. A replicação viral se dá no líquido alantoico, que envolve o embrião fecundado e que é posteriormente purificado, para que apenas os vírus sejam extraídos, inativados e fragmentados para serem utilizados. Vacinas contra raiva, poliomielite e hepatite A e B também são feitas através desse método.
Por fim, as vacinas de DNA ou RNA baseiam-se no código genético do patógeno. Novas técnicas em biotecnologia na produção de vacinas baseiam-se no código genético dos agentes infecciosos. O material genético é composto pelo DNA (ácido desoxirribonucleico) e RNA (ácido ribonucleico), que podem ser fragmentados em moléculas menores, os nucleotídeos. DNA e RNA são macromoléculas quimicamente diferentes e desempenham funções diferentes.
Os coronavírus não possuem DNA, apenas um filamento de RNA envolto em um envelope proteico. A parte desse envelope responsável pela interação com o receptor humano ECA2 (Enzima Conversora da Angiotensina 2), é conhecida como spike protein, ou proteina S, pelo seu formato de espinho. Pesquisadores estudam várias possibilidades de replicação da spike protein para inseri-las em uma vacina, seja através de sequenciamento genético ou outros métodos.
Uma combinação de técnicas
O desenvolvimento e produção em larga escala de vacinas é um processo que necessita cumprir uma série de etapas. Primeiro, é necessário mapear os agentes infecciosos para que se possa encontrar a parte específica de seu envelope proteico que se liga ao receptor humano. Para isso, pode ser necessária a avaliação de dezenas ou centenas de antígenos, que são as moléculas ou partículas capazes de desencadear a resposta imunológica.
Após a detecção e compreensão do processo de ligação ou interação química entre o vírus e o receptor, deve-se realizar testes em animais para que haja a confirmação de que a ligação ou interação realmente acontece da maneira prevista. Até aí estamos na fase pré-clínica de todo o processo.
A fase clínica divide-se em três: primeiramente a vacina é testada em algumas dezenas de voluntários, levando aproximadamente três meses para conclusão da testagem; em um segundo momento, alarga-se a quantidade de voluntários até algumas centenas de participantes para que se possa coletar dados a respeito das respostas imunes produzidas, o que geralmente leva seis a oito meses; então, finalmente, chega-se à última etapa em que a testagem é feita em milhares de participantes quando, mesmo depois de aprovada, a vacina continua sendo monitorada pelas agências reguladoras para a detecção de efeitos colaterais. Essa última etapa leva mais seis ou oito meses para ser concluída.
De acordo com a pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan de São Paulo, Profª Drª Luciana Cezar de Cerqueira Leite, para a escolha dos antígenos a serem testados, deve-se verificar os diferentes mecanismos de resposta imunológica desencadeados. Quais anticorpos são mais eficazes contra a doença? É importante uma resposta celular através da ativação de macrófagos? Qual resposta é a melhor? Uma das propostas da pesquisadora é o uso da biologia de sistemas para indicar qual tipo de resposta imune a vacina vai induzir. Daí a importância da investigação de novos mecanismos de exposição dos antígenos no corpo humano para o alcance de respostas mais eficazes.
No caso da covid-19, esse é um dos problemas. Ainda não se sabe quais os correlatos de proteção imunológica seguros para o combate ao vírus. E só devemos esperar pela resposta depois dos resultados das primeiras vacinas a serem testadas em humanos. Caso as primeiras tentativas falhem, essas informações serão essenciais na continuação das pesquisas.
Por sorte, no caso do novo coronavírus, não há muitos antígenos para escolher, pois existem algumas proteínas de superfície, como a proteína S, proteínas de membrana mais escondidas, as que constituem o envelope proteico que envolve o RNA e outras que se localizam na parte interna. A maior parte das vacinas se baseia na replicação da proteína S, pois já se sabe que a resposta imunológica gerada possui atividade neutralizante contra o vírus, e é nela que o Instituto Butantan também visa investir.
A pesquisadora menciona algumas técnicas promissoras, como as que utilizam o vírus inativado. No momento, existem sete vacinas desse tipo em desenvolvimento e três em ensaios clínicos nas fases I e II. Como não há necessidade de recombinação genética, são mais fáceis de testar. A maioria está sendo desenvolvida na China, onde pesquisadores já trabalham com base nos estudos desenvolvidos no surto do primeiro corona vírus, o SARS-CoV-1, em 2003.
Outra técnica é o uso de vírus atenuados ou enfraquecidos. Geralmente são utilizados vírus não patogênicos ao corpo humano mas que são muito estimuladores da resposta imune. Duas vacinas baseadas nessa técnica estão em fase pré-clínica de testes.
Cerca de 17 vacinas baseadas em RNA estão em desenvolvimento. É uma técnica nova que não dispõem de tantos estudos como as baseadas em DNA. A vacina desenvolvida pela empresa norte-americana Moderna se encontra em etapa mais avançada, já que também foram utilizados estudos a respeito das interações da proteína S do SARS-CoV-1, o que acelerou os testes. Ainda não existe nenhuma vacina aprovada através desse método.
Quanto tempo para a vacina?
Para a pesquisadora, existem dois gargalos a serem vencidos. O primeiro tem relação com os testes das fases clínicas das vacinas em andamento. O desafio é que uma vacina seja eficaz e segura para aplicação em seres humanos. Caso as vacinas sejam capazes de proporcionar uma resposta imunológica satisfatória, pode-se começar a pensar em escalonar a produção, que é o segundo gargalo.
“Vai ser difícil saber qual o tamanho da fila, quem estará na fila. O primeiro gargalo será ano que vem e talvez mais um ano para conseguir produzir para todo mundo. A (empresa) Moderna disse que consegue produzir 1 bilhão de doses em um ano inteiro. Se for necessário duas doses só para os EUA, serão 300 milhões, e se forem três ou mais doses? É praticamente toda a produção da Moderna. Isso deverá ser multiplicado para o atendimento de todos. Quanto tempo vai levar, não sabemos, isso nunca foi feito nessa escala” diz.
A perspectiva é de que as instituições brasileiras, como o Instituto Butantan e a Fiocruz, que já atuam na produção e distribuição de vacinas, estejam preparadas para adquirir a tecnologia desenvolvida mais interessante e começar a produção o mais rápido possível, já que um só fabricante não terá capacidade de produzir para todo o mundo. Mesmo no cenário mais otimista, em que pesquisadores do mundo inteiro se empenham na busca de uma vacina contra a covid-19 em tempo recorde, tudo indica que ela chegará aos nossos braços somente em 2022.
Edição: Monyse Ravena