“Eu tive por aquele inferno que eles chamam de CPA (Cadeia Pública de Altos). O que tá acontecendo lá é um descaso total, porque quando a gente vai preso a gente já perdeu já. A gente ta lá disposto pra cumprir nossa pena e lá a gente não consegue nem cumprir isso”. O relato é de um ex. detento, saído recentemente da Cadeia Pública de Altos, e enviado a nossa equipe por meio de familiares de presos da CPA.
O ex. detento continua a narrativa revelando a vida que ninguém quer ver. “A gente é bastante humilhado, a gente come spray de pimenta, não têm direito de nada, a gente toma café da manhã às sete horas da manhã, almoça às onze da manhã, três horas da tarde é a janta e não tem direito de entrar nem biscoito, não tem banho sol. Eu passei mais de 15 dias dormindo no chão, sem escovar os dentes. As nossas roupas são todas rasgadas, não tem atendimentos médico”.
Como ele, muitos homens e mulheres (em sua maioria, negros e negras, auto-declarados pardos e indígenas) estão amontoados em celas minúsculas, sem direito a visitas e com péssimas condições de higiene e alimentação, adoecendo aos olhos do poder público sem que ninguém possa ver.
Desde o início do mês maio, pelo menos 23 detentos da Cadeia Pública de Altos – CPA (distante 46 km da capital Teresina) foram internados em hospitais públicos com um quadro infeccioso ainda sem confirmação, mas com suspeita de leptospirose. Cinco deles já morreram. O último, Isaac Gomes de Oliveira, 23 anos, faleceu neste domingo (24/05) no Hospital Getúlio Vargas – HGV. No mesmo dia, Robert Ozeas da Silva Pereira, também morreu no Hospital de Urgência de Teresina – HUT.
O sistema, que deveria ressocializar, aprofunda ainda mais as desigualdades e as violações de direitos fundamentais. Quadro que torna-se ainda mais nítido em meio a uma das mais graves crises sanitárias da história da humanidade. Os presídios piauienses acumulam mortes, denúncias de violações de direitos e famílias desesperadas, sem informações sobre os detentos.
Familiares realizam manifestações, pedem justiça e direitos
Cinco mortes! Não se trata de uma mera estatística, mas de vidas humanas. Issacc, Robert, Jefferson, Ítalo e Francisco tinham pai, mãe, esposas que hoje choram suas mortes. Nesta segunda-feira, 25/05, vestidos de preto e com cartazes nas mãos, familiares de detentos da penitenciária se reuniram na porta do Tribunal de Justiça do Piauí. O grito de socorro veio após a confirmação da quinta morte da Cadeia Pública de Altos.
“Estamos atrás dos direitos dos nossos familiares. Eles estão sendo humilhados, torturados e até morrendo na cadeia e a gente aqui não tem informação nenhuma. Eu aqui, em nome de todas as famílias, quero declarar pro mundo e pra todos que a CPA (Cadeia Pública de Altos) não é cadeia de disciplina, é cadeia de tortura”, o desabafo é de uma mulher que preferiu não ser identificada, mas se juntou a outros familiares de presos em uma manifestação no dia 18 de maio.
Maria da Conceição, mais conhecida como Cecé, é da Articulação Nacional de Direitos Humanos no Piauí (MNDH-PI). Desde abril, ela começou a receber denúncias relacionadas ao fornecimentos de produtos alimentícios e de falta de materiais de higiene e limpeza. Sob a justificativa da Pandemia, os presídios ficaram blindados de qualquer fiscalização dos órgãos de controle e da sociedade civil. Hoje, de acordo com ela, o que se vê é um “desfile” de jovens homens inutilizados nos corredores dos Hospitais.
“Os hospitais públicos de Teresina estão cheios de presos da CPA de Altos, todos urinando por sondas, rins comprometidos, fígado comprometido. Estão em cadeiras de rodas porque perderam a força dos braços e das pernas, com paralisia no aparelho respiratório, com febre, alguns com os pés embalados”, relata Cecé.
No domingo (24/05), após a quarta morte, a Secretaria de Saúde (Sesapi) e Secretaria de Justiça (Sejus) emitiram nota afirmando que reforçaram o atendimento aos detentos da Cadeia Pública de Altos. Na unidade, uma enfermaria foi instalada para o atendimento e acompanhamento dos internos e no Hospital Getúlio Vargas (HGV), uma nova ala, com 20 leitos, está sendo organizada para o tratamento desses casos.
“Estamos dando atenção especial para a situação. Desde a detecção dos casos, todo o tratamento necessário está sendo oferecido. Na enfermaria da Cadeia de Altos temos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que estão fazendo o acompanhamento, tratamento e encaminhamento dos detentos. Todos estão sendo atendidos”, disse o secretário de Justiça, Carlos Edilson.
“Eu não vim aqui pedir que deem um hotel cinco estrelas pra gente não, eu vim pedir pra cumprir a pena, sem porrada e sem humilhação”
A superlotação é uma constante nos presídios brasileiros. Falta espaço e sobram corpos amontoados. As poucas opções de trabalho, dentro e fora das penitenciárias, aumentam a difícil missão de ressocialização dos detentos.
Em um artigo publicado seis anos atrás, Filipe Vergniano Magliarelli (então presidente da Comissão de Direito Penal do Movimento de Defesa da Advocacia – MDA) afirmava o que parece permanecer igual ainda hoje: o sistema prisional brasileiro, tal como está estruturado, consome cada vez mais investimentos públicos e não atende aos fins a que foi proposto: não reintegra, não ressocializa nem regenera o indivíduo, mas o expõe a ambiente nefasto e desumano, ainda não sendo capaz de reprimir a criminalidade, que só aumenta.
“A gente não tem força, não estamos ali para brigar com o estado e com ninguém. A gente vive em um país democrata, onde a maioria do povo abomina a ditadura, mas eles não sabem que por dentro do nosso próprio Brasil existe essa escravidão, essa ditadura com os apenados”, diz um ex. detento em áudio enviado a nossa equipe por familiares de presos da CPA.
As denúncias vão além
Em abril começaram a circular denúncias de violações de direitos na penitenciária José de Ribamar Leite, antiga Casa de Custódia de Teresina. No vídeo, que circulou nas redes sociais, dezenas de presos denunciam falta de material de higiene, alimentação e superlotação das celas. Com um espaço muito reduzido, os presos dividiam um único banheiro da cela e revezavam até horário para dormir.
Na época, a Secretaria de Justiça afirmou que o vídeo citado era antigo e que não é pertinente com a realidade da Penitenciária. A Sejus disse ainda que tem adotado medidas de prevenção, bem como o reforço da alimentação e limpeza de suas unidades penais.
No dia 18 de Maio dezenas de manifestantes foram ao Palácio de Karnak, a maioria mulheres. De cartazes nas mãos, elas pediam saúde, dignidade e informação sobre seus familiares. Elas ainda denunciavam possíveis agressões que os detentos estariam sofrendo.
O medo agravou depois que um detento morreu no HUT (Hospital de Urgência de Teresina), após passar oito dias internado devido a infecção no presídio. Os familiares temem que a Covid-19, doença causada pelo Novo Coronavírus, entre nas prisões e se espalhe rapidamente.
A Secretaria de Estado da Justiça informou que instaurou um procedimento administrativo para apurar, junto à Corregedoria Geral do Estado, as denúncias de maus tratos a que estariam sendo submetidos os internos do estabelecimento penal. Sobre a suposta falta de informações, a Sejus reitera que estas são repassadas, diariamente, aos familiares cadastrados no sistema de visitas dos reeducandos. Segundo a Sejus os detentos são assistidos com materiais de higiene e alimentação suplementar nesse período de suspensão de visitas.
Outra epidemias já comprovam a fragilidade da saúde dos detentos
No final do ano passado, o Ministério Público do Piauí fez uma inspeção na Casa de Detenção Provisória Dom Inocêncio Lopez Santamaria, localizado na cidade de São Raimundo Nonato, onde foi constatado a existência de 12 detentos diagnosticados com tuberculose, sendo que havia ainda a suspeita de que outros 40 presos pudessem estar infectados.
Os casos de tuberculose estão espalhados pelos presídios brasileiros. O Ministério da Saúde registrou, entre 2009 a 2018, cerca de 80 mil casos de tuberculose e 853 mortes causadas pela doença em pessoas que estão privadas de liberdade. O mesmo levantamento mostra que a maioria das pessoas presas que tiveram tuberculose são negros (66,5%), que representa o dobro dos casos entre brancos.
Afinal, o que é e para que serve a cadeia?
As respostas a essas perguntas não são tão simples, mas a Prof. Dra. Maria Sueli Rodrigues, membra do Grupo de Estudo Direitos Humanos e Cidadania – DIHUCI e do Coletivo Antônia Flor (CAF), não tem dúvidas: o papel das penitenciárias deveria ser de ressocialização. “Esta é a promessa”, ressalta.
Apesar disso, ela acredita que o sistema prisional no Piauí e no Brasil atua sob uma lógica inversa, onde o que impera é desumanização dos indivíduos. “A cultura ocidental inteira destinou às prisões os corpos etiquetado como indesejáveis”, afirma Sueli. Ela não acredita em uma superação desse modelo dentro dos paradigmas que normatizam o direito e o sistema penal brasileiro. “É necessário modificar a natureza da pena. O paradigma retributivo ocidental é incapaz de ressocializar e pacificar”, afirma.
Hoje existe um certo consenso quanto à perda da função social das penitenciárias e esvaziamento dos seus objetivos ressocializadores. Rafael Godoi, em seu livro Fluxos em Cadeia: As prisões em São Paulo na virada dos tempos, afirma que as cadeias passaram a funcionar como mero dispositivo de contenção e incapacitação de amplas camadas populares marginalizadas. “A prisão passa a se configurar como um depósito de um excedente populacional que não para de crescer em tempo de globalização e de ajustes neoliberais”, escreve Rafael, no livro.
Para Sueli é preciso recuperar a função do direito de pacificar a sociedade
Hoje, ao invés de pacificar, a função do direito tem sido enviar os corpos rotulados para separá-los da sociedade. “A sociedade inteira sempre vai precisar de algum regramento que possibilite a vida no conjunto da sociedade. Mas o que o ocidente fez foi transformar o direito (único lugar em que se fala em pacificar a sociedade) em uma subsunção, ou seja pegar o caso, aplicar a norma e dizer a pena”, afirma.
Para superar esse modelo, Sueli defende que voltemos as novas raízes, que busquemos em nossos ancestrais a sabedoria de lidar com os conflitos. “Se a gente olhar modelos tradicionais africanos e indígenas, o direito é muito mais amplos, vai até a pacificação da sociedade”, diz. Para isso, ela apresenta duas opções que, inclusive, já estão sendo aplicadas timidamente em alguns estados brasileiros.
“É o que está sendo chamado de justiça restaurativa e constelação familiar. Esse primeiro modelo é aplicado a crimes de menor potencial ofensivo (mas ainda dentro da lógica do direito ocidental), colocando a vítima na frente de quem cometeu o crime como forma chegar a um perdão. Mas dessa forma isso não funciona, para pacificar é preciso que todo o grupo social se sinta no lugar de quem vai cumprir a pena. Aquele que vai pro presídio sempre é o outro, nunca é você, por isso ele pode até morrer”, afirma.
A constelação familiar é outro modelo, em que a pessoa se coloca no lugar do outro. “É isso que falta pra gente, porque aquele que comete o ilícito sempre é o bandido e nunca pode ser você. A gente tem uma resistência muito grande na sociedade que quer que aquela que cometeu o ilícito morra e a gente sabe que aquele que vai pra prisão é aquele já rotulado como o corpo indesejado”, diz.
Para modificar isso, a Profa. Sueli acredita que é preciso modificar o paradigma do direito. “É preciso que esses modelos alternativos, como a justiça restaurativa e a constelação familiar, sejam a regra e não apenas aos (crimes) de menor potencial ofensivo”, finaliza.