Os setores dominantes se esforçam por manejar bem os números. Constantemente, fazem projeções financeiras, calculam as benesses de seus investimentos e estimam os juros que poderão embolsar a cada empréstimo realizado. Mas, diante de tantos cálculos e em meio a tantas cifras importantes para demonstrar a "saúde econômica" de suas empresas, alguns quantitativos são observados e apresentados por estes setores com certa insignificância e/ou são expostos com tom de desimportância. Duas falas são bastante ilustrativas a este respeito: em uma delas, o interlocutor sugere que a morte de cinco ou sete mil pessoas não constitui algo tão grave, em comparação com as consequências econômicas que poderemos enfrentar neste momento. Na outra, se especula que apenas 10 ou 15% dos “velhinhos” irão morrer, diante da atual conjuntura.
Esses números foram recentemente estipulados, com uma frieza descabida, por dois conhecidos empresários brasileiros. Seus discursos se construíram na intenção de enfatizar que a ocorrência de uma pandemia responsável por destroçar vidas em todo o mundo não deveria se configurar como um motivo consistente para que os trabalhadores se ausentassem de seus postos de trabalho.
De modo geral, tais pronunciamentos alegam uma preocupação com os rumos da economia do país e com as consequências que sua desregulação poderá gerar para toda a sociedade, mas, na verdade, seus formuladores estão preocupados com seus próprios bolsos. Assim, a busca constante e incessante por lucros não os intimida a defender que as pessoas retomem seus trabalhos, ainda que, no domingo passado (29), o avanço do vírus já tenha registrado 136 mortes e apontado 4.256 casos confirmados em todo o Brasil.
É possível que algum empresário possa observar esta notícia e se debruce sobre ela operando uma "simples" subtração. Por exemplo: 7.000 - 136 = 6.864. E, talvez, após fazer este cálculo, sinta algum tipo de conforto ou alívio em saber que o número obtido/alcançado está dentro de sua prospecção.
Os trabalhadores e trabalhadoras assumem, sob as lentes oculares desses homens de negócios, a feição de "objetos" facilmente descartáveis e substituíveis. São enquadrados como simples fatores de produção e relegados à condição de mercadorias baratas. Assim, é inaceitável a maneira como a vida de homens e mulheres vem sendo tratada no discurso e nas práticas dos setores dominantes brasileiros, sobretudo nesse contexto de pandemia. Trata-se mesmo de uma grave violação dos direitos humanos, pois tal comportamento relega milhares de indivíduos à própria sorte, contribuindo fortemente com o seu aviltamento nos campos socioeconômico, político e cultural.
Este quadro de discursos se complementa e se agrava ainda mais com a fala proferida na noite do dia 24 de março por Jair Bolsonaro. Na verdade, desde os primeiros dias de seu governo, os direcionamentos políticos e econômicos do presidente apontam para uma defesa contundente do empresariado brasileiro, bem como de suas pautas e demandas. E, para seguir firme com este propósito, a postura de Bolsonaro é cristalina neste momento de crise: de um lado, naturaliza a situação que estamos vivenciado ao tratá-la como simples “histeria” ou reduzindo o fenômeno a uma “gripezinha”, contrariando, inclusive, as indicações nacionais e internacionais sugeridas por autoridades científicas para o trato com o covid-19. De outro lado – e associado a esta naturalização – o presidente brasileiro busca intimidar e amedrontar a população, sugerindo que as pessoas deveriam voltar a desempenhar suas atividades normalmente, o que inclui, por certo, o regresso ao trabalho.
Após esse discurso, o presidente utilizou sua conta pessoal no Twitter para redigir o seguinte texto: “38 milhões de autônomos já foram atingidos. Se as empresas não produzirem não pagarão salários. Se a economia colapsar os servidores também não receberão. Devemos abrir o comércio e tudo para fazer preservar a saúde dos idosos e portadores de comorbidades”. Trata-se de uma postura irresponsável e reprovável. Até quando o empresariado brasileiro insistirá em reduzir vidas e sonhos a cifras estatísticas ou a números sem importância? Até quando Bolsonaro irá naturalizar a morte dos trabalhadores para justificar a “robustez” econômica? Até quando a lógica do capital irá prevalecer determinando uma existência sem sentido para milhões?
De modo geral, a sociedade vem repudiando as posturas assumidas por este governo diante do avanço do covid-19. Inclusive, recentemente, o Valor Econômico divulgou informações produzidas a partir de uma pesquisa quantitativa telefônica realizada em todo o território nacional entre os dias 20 e 21 de março, por meio da qual constatou-se que 50% dos entrevistados desaprova a ação do presidente no trato com a crise ocasionada pelo coronavírus e outros 64% não confia em sua capacidade para gerenciá-la.
Mesmo diante dos inúmeros posicionamentos que rechaçaram os posicionamentos e atitudes do presidente, suas investidas para fazer a economia “girar” não cessaram e, pior, se adensaram a partir da construção de uma campanha que fez ecoar a máxima “O Brasil não pode parar”. Nela, a cada imagem e texto reproduzido no vídeo, se exalta a importância dos trabalhadores, sugerindo que os mesmos retomem o batente. Um trecho, em especial, nos chama atenção, a saber: “Para todas as empresas que estão fechadas e que acabarão tendo de fechar as portas ou demitir funcionários #oBrasilNãoPodeParar”. Tal trecho segue o direcionamento intimista e amedrontador que Bolsonaro já vinha assumindo em seus discursos anteriores e isto não pode ser minimizado, principalmente se pensarmos no terror que pode provocar nos trabalhadores, sobretudo considerando que o Brasil é um país marcado por índices de desemprego expressivos e por uma elevada taxa de rotatividade da força de trabalho.
Gostaria de lembrar que esta não é a primeira vez que Bolsonaro age ferindo os interesses da classe trabalhadora (e nem será a última, enquanto perdurar seu governo). Quando ainda se apresentava como possível candidato à presidência, ele se notabilizou pelo pronunciamento que enfatizava: “o trabalhador vai ter que decidir: menos direito e emprego ou todos os direitos e desemprego”. Naquela ocasião, em sintonia com o desejo dos empresários ávidos pela aprovação da contrarreforma trabalhista, Bolsonaro já alertava de que lado estaria “jogando”. E, essa nova campanha, o confirma. Em síntese, ela é a forma que Bolsonaro encontrou para colocar os trabalhadores em uma encruzilhada: salvar a economia ou salvas suas próprias vidas. E, quando alardeia o slogan “O Brasil não pode parar”, expressa que o caminho de sua preferência é este primeiro.
Por certo, não tardou para que os diversos setores da sociedade reagissem e tomassem posição crítica frente ao caso. Assim, ainda no dia 28/03, a partir de ação movida pelo Ministério Público Federal contra a União, ordenou-se que a campanha “O Brasil não pode parar” deixasse de circular pelos meios digitais e/ou impressos, tendo em vista que o seu caráter e o seu direcionamento feriam à população brasileira, por sugerir, entre outras coisas, “[…] comportamentos que não [estão] estritamente embasados em diretrizes técnicas, emitidas pelo Ministério da Saúde, com fundamento em documentos públicos, de entidades científicas de notório reconhecimento no campo da epidemiologia e da saúde pública”. (AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 5019484-43.2020.4.02.5101/RJ).
Diante do quadro, a Secretária Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) se pronunciou enfatizando que o vídeo não constituía campanha oficial do governo. Estranha-se, contudo, a presença de seu conteúdo nas redes oficias (posteriormente excluído, como enfatizaram alguns jornais) e a similaridade de ideias que, em alguma medida, se pode observar entre a postagem feita pelo presidente através do Twitter e partes do vídeo aqui aludido. Também não se pode negar que a campanha encontra correspondência com as defesas públicas que Bolsonaro fez sobre o tema e, por isso mesmo, sua responsabilidade nesse processo não pode ser reduzida. Se nada ocorrer, é possível que Bolsonaro e sua equipe sigam arquitetando medidas para defender (com ou sem a recorrência ao slogan) que “O Brasil não pode parar”. O empresariado brasileiro, certamente, as apoiará.
Como é possível observar, os discursos do empresariado brasileiro e os do Presidente da República confluem. Ambos expressam uma preocupação com a “estabilidade” da economia nesses tempos de crise e, igualmente, ambos reconhecem os trabalhadores como “peças” que devem ser mobilizadas para impedir que a propalada economia definhe ainda mais. Nessa direção, os trabalhadores são convocados, incentivados e, de múltiplas formas, ameaçados a continuarem trabalhado, mesmo que isto custe suas próprias vidas.
Como procurei demonstrar no transcorrer deste texto, os setores dominantes apreciam os números e as cifras. Por isso, gostaria de encerrar esta nota com uma reflexão que nos convida a pensar sobre “valores”: a história, movida pelos sujeitos que a impulsionam, há de cobrar – daqueles que, atualmente, estão pautando o retorno ao trabalho e, portanto, a morte dos trabalhadores – um elevado preço. Nesse momento, carecemos defender o óbvio: a vida de homens e mulheres importa! Nesses tempos de investidas perversas contra o povo brasileiro, o questionamento de Brecht faz todo o sentido: que tempos são estes, em que é necessário defender o óbvio?
*Professor do Curso de Serviço Social da UFCG
Edição: Monyse Ravena