Ceará

Resistência

Crônica | Em tempos sombrios: iluminar junto

Somos gente, e maiores que esse cotidiano alienado e alienante

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
"Que nos juntemos aos nossos, apesar das selvagerias que nos assolam"
"Que nos juntemos aos nossos, apesar das selvagerias que nos assolam" - Maycon Nunes /Agencia Pará

“Diego não conhecia o mar. 
O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.    
Viajaram para o Sul.     
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.    
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. 
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. 
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: 
- Me ajuda a olhar!”
 

Esse texto do Galeano já me salvou de mim mesma, do mundo, e dos outros em meu entorno, inúmeras vezes. Mas esse ano, nesses últimos dias, não sei se a repetição dele, ou se por causa de incompetência sensível minha, essa salvação não foi capaz de se concretizar. Li e reli com uma sofreguidão do apaixonado que espera a reciprocidade do ser amado, da criança faminta em busca do leite materno, do sedento que ao avistar um rio, quase desfalece só em imaginar a água tocando sua boca, descendo em sua garganta, saciando sua sede. 

A leitura não adiantou. O cotidiano da última semana, a realidade imposta pela atual conjuntura do país, me fez submergir em um cansaço da vida que pareceu não ter fim. É gente morrendo de fome, de bala, de veneno, de indiferença... e o país inerte! Parece que não existe mais nenhuma humanidade aqui, só marasmo, indiferença, solidão. 

Foi com esse cansaço extremo instalado no peito, que passei os últimos dias a procura de algum respiro, de alguma leveza, alguma concreção possível de uma outra realidade, mas a objetividade da vida, só me jogou na cara foi mais dureza: amigos e amigas sucumbindo à depressão, mulheres próximas ao meu afeto e outras próximas pela nossa condição de feminino que nos une nessa sociedade patriarcal, sendo devoradas pelo sistema que forja a subjetividade humana de forma egoísta, sem empatia pelo sentir do outro. E todo mundo sofre, quem pede amor e quem nega, ou é incapaz de partilhar afeto genuíno, humanamente necessário, para além das normas imposta deste mundo doente. Estamos todos um pouco adoecidos, desumanizados, cansados. 

Eu, devota que sou da arte, me pus nela essa semana em busca de alívio, num grito desesperado por luz. Fui ver o último filme do Almodóvar, recomecei Carolina de Jesus, ouvi o último álbum do Abujamra, espalhei Van Gogh na parede do meu quarto.

E ela que não nasce desligada da humanidade que a faz surgir, que exatamente é força comprovadora de que somos gente, e maiores que esse cotidiano alienado e alienante, responde. Quase que só com um soluço, gemido sumindo, mas responde. E ilumina como pode a escuridão em volta, e me diz em alto e bom som: só se resistiu a atrocidades assim em toda a história da humanidade estando junto, lutando junto, resistindo junto!
    
Que nos juntemos aos nossos, apesar das selvagerias que nos assolam, sejamos como a literatura na definição de William Faulkner, fósforos no meio de uma imensidão escura, ainda que insuficientes para iluminar toda a escuridão a nossa volta, carregando claridade suficiente para denunciar todo o escuro que nos encobre. Que não nos calemos até que nossos gritos em coro sejam fortes o suficiente par serem ouvidos e assimilados. Que a continuemos teimando em ser gente, em buscar dignidade na vida. Que a arte continue sendo luz, bússola, que continue ajudando a olhar e a desvelar a realidade posta. Que ela continua acendendo chamas e iluminando escuridões.

*É professora em Brejo Santo (CE)

Edição: Monyse Ravena