Em 21 de abril de 2010, José Maria Filho, o Zé Maria do Tomé, foi assassinado com mais de 20 tiros, a queima roupa, próximo a sua residência, na comunidade de Tomé, Limoeiro do Norte, Ceará. Zé Maria destacou-se na luta contra a pulverização aérea de agrotóxicos na Chapada do Apodi (CE). Essa atividade, promovida por grandes empresas do agronegócio, causa a contaminação da água, das plantações e do solo. Além disso, provoca diversas doenças nos trabalhadores das empresas e moradores da região.
As denúncias feitas por ele eram embasadas em inúmeras pesquisas acadêmicas, ações judiciais e procedimentos do Ministério Público (Estadual, Federal e Trabalhista), como a Ação Civil Pública que obrigou a prefeitura de Limoeiro do Norte a construir um sistema de abastecimento de água alternativo, pois a rede pública estava contaminada pelos agrotóxicos. Outro procedimento do Ministério Público Federal apura denúncias de grilagem de terras das empresas do agronegócio em terras da União.
Ao denunciar as consequências do uso de agrotóxicos, além do debate sobre a saúde das comunidades que vivem no Apodi, Zé Maria enfrentou diretamente grandes empresas do agronegócio. Isso porque também revelou as irregularidades na concessão de terras nos perímetros irrigados da região, administrado pelo Departamento de Obras Contra Seca (DNOCS). Esses perímetros provocam um processo de desapropriação (e mesmo expulsão) de pequenos trabalhadores rurais e concedem as terras para médias e grandes empresas.
A luta de Zé Maria do Tomé, em conjunto com organizações comunitárias, pesquisadores/as, movimentos populares e diversos apoiadores/as, gerou uma pressão social sobre a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte. Em 20 de novembro de 2009 foi promulgada a Lei 1.278/2009 que proibia a pulverização aérea no município. Essa lei foi considera inédita no Brasil e ganhou repercussão internacional, ao banir a pulverização aérea de agrotóxicos.
As empresas do agronegócio da região não cumpriam o disposto na Lei 1.278/2009. Então, José Maria Filho passou a denunciar as ilegalidades do agronegócio. No dia 21 de abril de 2010, o defensor de direitos humanos foi assassinado, a poucos metros da sua casa, em típica ação de pistolagem. A lei que proibia a pulverização aérea foi revogada em dia 20 de maio de 2010, um mês após o assassinato.
O longo processo e a expectativa do Júri Popular
Em 25 de junho de 2012, mais de dois anos após a morte de Zé Maria, a juíza da 1ª Vara de Limoeiro do Norte aceitou denúncia oferecida pelo Ministério Público do Ceará (MP/CE) contra João Teixeira Júnior (proprietário da empresa Frutacor), José Aldair Gomes Costa (gerente desta empresa), Antônio Wellington Ferreira Lima e Francisco Marcos Lima Barros (ambos moradores da comunidade Tomé, que teriam dado suporte ao assassino) pelo homicídio. O primeiro denunciado é um dos mais importantes empresários do agronegócio no Ceará. O processo nº 7659-18.2010.8.06.0115 é o que trata do homicídio de José Maria Filho.
O suposto executor, Westilly Hitler Raulino Maria, foi assassinado em julho de 2010 em ação policial relacionada a outro crime. Em agosto de 2013, o denunciado Antônio Wellington Ferreira Lima também foi morto em uma operação policial. Outro investigado, conhecido como “Tião” e pai do réu Francisco Marcos Lima Barros, foi encontrado morto em fevereiro de 2013, supostamente um suicídio. Assim, dos seis investigados inicialmente, apenas três estão vivos.
Após dois anos, em 19 de agosto de 2015, a Justiça de Limoeiro do Norte pronuncia os réus, determinando a realização do Júri Popular para julgar João Teixeira Júnior, José Aldair Gomes Costa e Francisco Marcos Lima Barros.
Em janeiro de 2016, os réus ingressam com recurso no Tribunal de Justiça do Ceará (TJ/CE). Houve uma longa demora para apreciação dos recursos e diversos adiamentos da sessão de julgamento. Em 16 de março de 2017, a 2ª Câmara Criminal do TJ/CE decidiu, por 2 votos a 1, despronunciar os mandantes João Teixeira e José Aldair o que, na prática, absolve os réus, contrariando sete anos de investigação e processo criminal. Os três desembargadores da Câmara decidiram manter o Júri apenas para o agricultor Francisco Marcos. Certamente, essa é uma das páginas mais vergonhosas do Judiciário cearense.
Após a absurda decisão do TJ/CE, o Ministério Público ingressou com recursos para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). Em novembro de 2018, novamente o Tribunal de Justiça do Ceará mantém a impunidade dos mandantes, ao não aceitar remeter os recursos aos Tribunais Superiores. Em razão disso, o MP/CE ingressou com novo recurso ao STJ, para que seja revista a decisão de absolvição dos mandantes. Aguarda-se julgamento deste recurso (para acompanhamento: AREsp nº 1472159 / CE 2019/0088626-9).
A situação segue o padrão do Judiciário brasileiro em crimes semelhantes: impunidade para mandantes, especialmente quando empresários influentes, e punição para participantes e executores, geralmente pessoas simples e humildes. Fica a pergunta: quem mandou matar Zé Maria do Tomé?
Zé Maria vive na força do povo
A luta de Zé Maria não foi em vão e permanece atual. Em 9 de janeiro de 2019 foi publicada a lei estadual nº 16.820, chamada “Lei Zé Maria do Tomé”, de autoria do Deputado Estadual Renato Roseno (PSOL/CE), que proíbe “a pulverização aérea de agrotóxicos na agricultura no Estado do Ceará”.
Para lembrar a data do assassinato, todos os anos os movimentos do campo, sindical e de pesquisadores pelo direito a Terra á água e ao território organizam a Semana Zé Maria do tomé. Este ano ela acontece entre os dias 29 de abril e 5 de maio, com atividades nas comunidades do Apodi, na Universidade Estadual do Ceará, em Limoeiro do Norte. Além de evocar a memória do mártir, o evento promove debates e mobilizações contra os agrotóxicos e em defesa da vida.
Esse caso é emblemático no contexto dos crimes, assassinatos e violência no campo brasileiro. José Maria Filho foi assassinado por defender direitos do povo: direito ao meio ambiente, à terra e ao território, ao trabalho digno, à saúde e à vida. O Estado brasileiro e, em particular, o Judiciário estão marcados pela impunidade e injustiça, diante de quase dez anos sem uma resposta efetiva à família de José Maria Filho e à sociedade brasileira. As organizações de direitos humanos, movimentos populares, organismos da Igreja Católica e diversos apoiadores acompanham o caso com atenção e preocupação. Espera-se que se faça justiça, com a condenação dos responsáveis pelo assassinato de José Maria Filho. Quem mandou matar Zé Maria do Tomé?
*Advogado e pesquisador, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/CE e do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS).
Edição: Camila Garcia