Ceará

Mineração de urânio

Entrevista | “Mineração, segundo o Ministério do Trabalho, é atividade que mais adoece e mata”

Erivan Silva conversou com BdF sobre o processo de licenciamento de beneficiamento de urânio e fosfato em Santa Quitéria

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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A licença que autoriza o local da mina ainda não garante o início da produção. - Foto: MAM

Em nota à imprensa, a Comissão Deliberativa da Comissão Nacional de Energia Nuclear informou que concedeu a Aprovação do Local para a Instalação de Beneficiamento de Urânio do Complexo de Santa Quitéria, localizado no Munícipio de Santa Quitéria, no estado do Ceará. Essa, de acordo com nota, é a primeira etapa do processo de licenciamento mínero-industrial associado ao empreendimento. A licença que autoriza o local da mina ainda não garante o início da produção. Mas o que essa licença significa? O que pensam os movimentos populares e moradores de Santa Quitéria sobre essa ação? Quais os impactos dela na vida dessas pessoas? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Erivan Silva, da direção nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). 

O que significa essa licença?

Primeiro, essa licença é aquela velha história que a gente já conhece muito bem, a história da raposa cuidando do galinheiro. Por que eu digo isso? Porque a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) dá uma licença para a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que é quem detém o direito para fazer a pesquisa, ou a mineração lá da mina de Itataia, então significa dizer que sãos dois órgãos estatais, um que dá licença para o outro de uma forma, no mínimo, meia que esquisita. E segundo, é que essa licença, que nós estamos chamando de “fragmentação do processo de licenciamento do Consórcio Santa Quitéria”, em relação a mina de urânio e fosfato, é um dos caminhos que o Consórcio inventou, na verdade, para poder trilhar um caminho mais fácil. 

Tem um licenciamento nuclear, que é de responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear; tem o licenciamento geral, que aí é do Ibama, digamos assim; e tem um licenciamento que vai ser com relação à questão hídrica que seria, ou que será, na verdade, de responsabilidade do estado, inclusive a Semace que está cuidando disso. Então, nós também não temos dúvidas que é um caminho muito fácil que o Consórcio está trilhando para poder obter essas licenças com mais facilidade, porque na outra licença, em 2019, que o Ibama arquivou, ele questionou, inclusive, essa questão.

Um terceiro ponto é que essa licença significa apenas a licença para o local de beneficiamento do urânio e mais nada. Então eu queria deixar certo que é apenas uma licença para o local de beneficiamento do urânio. E essa licença, vindo da Comissão Nacional de Energia Nuclear é muito complexa. Nós tivemos duas audiências públicas já, no licenciamento que foi arquivado em 2019 pelo Ibama, e no outro processo, que o Consórcio solicitou e iniciou em 2020 e teve também audiências em 2022, apresentando o estudo de impacto ambiental, e nesses dois momentos, as pessoas que vieram ou que representaram a Comissão Nacional de Energia Nuclear foram, no mínimo, simplistas com relação ao diálogo que a gente quis fazer, na verdade, na audiência, relacionar à questão da radioatividade. Então eles querem menosprezar, na verdade, a história da radiação. 

Como vocês do MAM e os moradores de Santa Quitéria e municípios vizinhos, receberam a notícia desse licenciamento?

Desde que essa matéria ganhou os jornais, as pessoas começaram dialogar com a gente, principalmente as pessoas que moram lá no território. Eu lembro que uma pessoa mandou uma mensagem para mim perguntando: “e aí, essa licença agora já é para liberar a mina?”, ou seja, as pessoas ficam “matutando” o que é que isso significa, porque as notícias que saem no jornal não saem com alguns comentários para poder, no mínimo, explicar o que é que de fato essa licença pode significar, ou não, só tentam, de fato, vender uma ideia de que a mina vai sair. A gente sempre recebe e, na verdade, a gente sempre espera sair alguma coisa nesse sentido, porque a gente sabe o que é que o estado pensa com relação a isso, tanto a federação como aqui no estado do Ceará mesmo. O Consórcio está sempre sentando com os governos, está sempre dialogando, então para nós do MAM, não é de muito espanto isso agora, o que espanta, na verdade, é o teor de informações que é repassado para a sociedade, mas na verdade, nós do MAM não esperamos o pior, mas também não duvidamos que ele possa vir e, infelizmente ele veio. 

Então, assim, nós não nos surpreendemos com o que vem sempre de lá pra cá, mas o que a gente tem feito sempre é resistir também do lado de cá, ou seja, é por isso que essa informação que circula no Brasil de Fato é super importante para a gente se comunicar com o povo e dizer, “olha, se a gente fizer luta, se a gente fizer barricada, a gente pode, felizmente, vencer esse projeto ou vencer essa narrativa mentirosa que eles sempre pegam as pessoas”, infelizmente, alguns ainda acreditam.

A nota que foi divulgada para a imprensa informa que a concessão desta aprovação foi realizada após avaliação do relatório do local pelo corpo técnico da Comissão Nacional de Energia Nuclear e de diversos aspectos, incluindo geográficos, geológicos, hidrológicos, hidrogeológicos, geotécnicos, entre outros. Que relatório é esse?

Esse relatório, infelizmente, a gente não tem acesso do teor, como eles dizem aí nas matérias que saíram nesses dias. Nós não tivemos acesso, mas depois podemos solicitar. Acho difícil, inclusive eles repassarem para nós, porque, na verdade, quando se trata da história da radioatividade eles dizem que é uma matéria que é fechada, por exemplo, que tem a ver com a segurança nacional. Eles sempre têm dito isso. 

Quando o Conselho Nacional de Direitos Humanos analisou o estudo de impacto ambiental, eles viram várias inconsistências no relatório, que eles chamavam também “técnico”, então, primeiro a gente precisa ver esse relatório, um especialista na área tem que, de fato, analisar se isso é seguro do ponto de vista geográfico, geológico, hidrológico, como eles estão dizendo aí. 

Então é isso, os relatórios técnicos são duvidosos, a gente precisa ter acesso para poder fazer análises e a sociedade compreender o que, de fato, tem de seguro, porque eles sempre dizem que é ciência, que é seguro, etc, mas isso é muito duvidoso porque tem uma pauta política aí dentro que nós precisamos entender muito bem.

A licença que autoriza o local da mina ainda não garante o início da produção. Quais são as etapas desse licenciamento?

Então, do licenciamento nuclear isso é uma incógnita, porque eles disseram agora que está licenciado o local de implantação da indústria que vai beneficiar o urânio. Quais são as outras etapas? A gente não sabe. Porque na verdade, como eu te falei anteriormente, esses processos relacionados à questão da radioatividade, a Comissão sempre frisou e, inclusive, nas audiências públicas, que certas coisas não podem ser publicizadas porque faz parte da segurança nacional, porque é um material radioativo, etc, então o que nós queremos também é saber quais são as etapas seguintes. Agora, quando a gente fala da licença ambiental relacionada ao Ibama, a gente saberia que tem a licença prévia, a licença depois de instalação, a licença para começar a funcionar, tem esse ritual, digamos assim, mas da licença nuclear a gente não sabe. Então é uma incógnita. O que é que eles vão licenciar como um processo, não sei se talvez seja parecido com esse ritual que o Ibama faz também. Por exemplo, uma pergunta para gente: Será que vai ter uma audiência pública para eles apresentarem o licenciamento nuclear? É uma interrogação. Eu acho que deveria ter, porque as pessoas deveriam compreender o que é, que de fato significa radioatividade, ou quais são as possibilidades de ocorrer algo que possa prejudicar a população. 

Em 2022, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, o CNDH, e a Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil estiveram no Ceará com objetivo de verificar eventuais violações de direitos humanos decorrentes do projeto de exploração mineral de fosfato e urânio em Santa Quitéria. Após essa visita, o CNDH aprovou o relatório intitulado “Violações de direitos humanos na mineração de Urânio”, onde apontou violação de direitos humanos pelo empreendimento. O que mudou de lá para cá que fez esse licenciamento ser possível?

Na verdade, nós não temos dúvidas que não mudou nada, ou seja, tudo aquilo que o Conselho Nacional de Direitos Humanos relatou em um documento que tem quase duzentas páginas e que está acessível no site para quem quiser ver, está do mesmo jeito. O que a gente sabe, na verdade, é que saiu agora essa licença do local de beneficiamento. Mas o outro relatório, que o Ibama foi indicado simplesmente pelo diretor geral para refazer a gente também ainda não tem acesso, então deverá ter audiências públicas de novo para reapresentar o que eu estou dizendo com relação ao estudo de impacto ambiental que o Ibama reavaliou e impôs algumas outras pesquisas, enfim, que são variadas, mas com relação à história da licença da Comissão Nacional de Energia Nuclear, eu acho que não mudou nada. 


"O trabalho na mineração adoece muita gente e o trabalho na mineração também mata", Erivan Silva / Articulação Antinuclear do Ceará

Você pode apontar os benefícios e os malefícios dessa extração para a população?

Dos benefícios, eu vou falar o que o Consórcio fala, mas nós, sociedade, nós do MAM, nós do território, mais localmente perto ali da mineração, já não acreditamos nisso, mas, por exemplo, quando a gente escuta falar que Santa Quitéria vai receber um montante de recursos de mais de 2 bilhões de reais, a gente fica meio pasmo porque é muito dinheiro, não dá para a gente contar em cédulas, mas dá aquele impacto, aí eles falam depois que vai ter muitos empregos, depois eles dizem: “ah, vai ter também muitos impostos que vai ser pago, e o município e o estado do Ceará vão ser beneficiados com isso”. Tudo isso não passa de uma narrativa que o modelo mineral no Brasil já constituiu. O modus operandi da mineração no Brasil, para nós do MAM, é muito claro. E não somos nós que dizemos isso, a mineração no país, segundo o Ministério do Trabalho é atividade que mais adoece e mata. Então, as pessoas que porventura sonharam ou estão sonhando em trabalhar na mineração, elas já entram sabendo disso. Isso não é número que o MAM está inventando, não, é número que o Ministério do Trabalho atualiza ano a ano. A mineração é a atividade que mais adoece e mata no país. Agora, se a gente considerar que essa mineração de Santa Quitéria é radioativa, isso pode ser muito mais grave. 

E as pessoas de Santa Quitéria e de municípios vizinhos, inclusive Fortaleza, não se enganem que vão ganhar muito dinheiro trabalhando na mineração, vai ganhar salário-mínimo. Quem poderá ganhar muito dinheiro, como a gente já sabe, são aquelas pessoas que têm uma qualificação, digamos assim, alta, os engenheiros, físicos, enfim, essas pessoas que deverão, talvez muitos deles, vir de fora. Então, assim, relacionado ao trabalho na mineração que eles dizem que vai dar muito dinheiro isso é informação falsa, sendo que a informação verdadeira é que o trabalho na mineração é cruel. O trabalho na mineração adoece muita gente e o trabalho na mineração também mata. 

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Edição: Camila Garcia